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Blindagem à tortura? (a propósito de artigo publicado na Folha de SP)

Inserido em 22 de fevereiro de 2017
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Abra a Folha de hoje (20/02/17), pg. 03 e se encontrará “Blindagem à tortura”, onde uma moça, Juana Kweitel, argentina ao que ressoa, diretora da ONG Conectas, afirma com Rafael Custódio, advogado e coordenador da ONG no Brasil, que “após observar centenas de audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, identificamos 393 casos de pessoas presas com indícios de terem sido vítimas de tortura ou maus-tratos. Em cerca de 80% dos casos que houve relato do preso denunciando violência durante a audiência, o Ministério Público não fez qualquer tipo de pergunta para apurar os fatos. Quando fez algum questionamento nesse sentido, em mais da metade das vezes foi para deslegitimar o testemunho”.

Explico, não como quem “observou” “centenas” de audiências – qual a fiabilidade desse interessante método estatístico, onde tanto a premissa numérica quanto a conclusão são imprecisas?-, mas, como quem realizou documentadamente “milhares” (qui gladio ferit, gladio perit) de audiências criminais como promotor de justiça ao longo de muitos anos, estudando também, outras milhares como professor de processo penal de promotores, juízes e advogados.

É que, desde que alguém seja acusado de um crime, é inerente a este humano o inato sentimento de defesa (instinto de conservação), cuja manifestação mais simplória é a negação da autoria com alguma escusa encontrada. Ninguém quer a pena. Assim, réus mentem instintiva e inteligentemente, do “moreninho gatuno” ao “branquinho lava-jato”; do pobrezinho de Assis (comarca do interior de SP) ao riquinho  que viralizou nas redes gritando “Eike prisão!”; do adulterador  em posto de combustível , ao corrupto em “posto” político desviando dos cofres da Petrobrás!

“The lie is on their lips”, parodiando a canção “Bad Blood”, de Neil Sedaka. Mesmo diante de todas as evidências, acusados mentem, e é natural, tanto que no Brasil o perjúrio não é crime…não sei aliás, se a mestre em direitos humanos da Essex University, disso foi informada. Países outros, tal crime existe. Advogados, a seu turno, defendem processualmente, o que é inerente à necessária profissão; Ongs de direitos humanos fazem denúncias em prol de seu tema, é da sua missão! Juízes julgam e, bem, promotores acusam. É que pertencem a eles, tais referidas funções! Seria algo estranho mudarmos a configuração da lógica, a ponto do padeiro cozinhar sorvete.

Desta forma, um promotor somente se atém às desculpas de torturas –estas que são bem mais velhas que ambas as idades dos cronistas somadas e multiplicadas por 10- quando para isto, no “conjunto da obra processual”, encontrar-se algum “fummus boni iuris” (uma fumaça de bom direito, aproveitando uma tradução comum). Mais que isso é perder o prumo do processo (sequência de atos legalmente ordenados que tem um desiderato claro). Do contrário, se dará relevância à mentira –emprestará legitimidade ao que diz o réu, que é suspeitíssimo- tornará a prova um imbróglio e, fatalmente, levará a uma dúvida que conduzirá, por sua vez, à absolvição (art. 386, inc. VII, do CPP). Inexperiente ou tontinho, é o que faz quem não sabe do que se trata, entregando à sociedade o pão amargo da impunidade atroz. Não é isto que quer uma Ong de direitos humanos, não é mesmo?

Penso que não refletiram direito, porque certamente também devem estar interessados no combate à impunidade (quero crer), correto? Sua pretensão legítima –apontar desmandos do Estado-, só incorre no reprovável método da generalização da função e da ausência de método estatístico, coisa que um par de aulas e imersão no tema talvez possam ajudar. Que ninguém me acuse de confundir animais diversos, mas, como metáfora –apenas como metáfora- posso dizer da álgebra criminosoXsociedade, o que se pode dizer da ciência médica: a bactéria trabalha ali mesmo onde o médico ministra o antibiótico. O diálogo existe, mas não é com a luva não esterilizada que o cirurgião pode fazer um corte. Assim não. Certamente, moços e idealistas –como tantas ongs de bom calibre- haverão de compreender que um promotor de justiça não pode ficar cabresteado pela “isca” da mentira que lhe atira o réu. Está em sua experiência na lide processual, dar ou não vazão a uma ou mais investigações paralelas, se algo de indiciário a isto conduzir. Não é qualquer alegação vazia que move patrimônio de dono e tira preso da prisão, ou custódia, como quer o doutor  (Rafael) Custódio, co-autor da resenha. Se, diante de algo razoável, houver algo que possa ensejar uma investigação, assim se faz. Dizer que o promotor pergunta para desqualificar a pretensa mentira, ao contrário de crítica é elogio em bom som. Somente a bestuntice desavisada pretenderia que o Ministério Público agisse diverso. Imaginem os réus da Lava-Jato, com sua fabulosa imaginação, quanta investigação diversionista não promoveriam, se tivessem tal poder sobre o MP? É que um promotor, procurador,  percebe facilmente que além de “terceirizador do patrimônio alheio” (expressão que cunhei em “direito penal da sociedade” para nominar o ladrão e não ferir finas sensibilidades), o acusado também o é, muitas vezes, um bom mentiroso. Não se esqueça, ademais, que para esta tarefa de defender aos pobres acusados (que também deixam os outros mais pobres do que são), temos a combativa defensoria pública, que no seu tempo fará as necessárias perguntas para ajudar ao assistido.

Este samba do “jurista doido” -aproveitemos os enlouquecidos pandeiros de Momo- não pode ser proposto a quem vive o direito aplicando-o diariamente. Pode ser, apenas, e com favor, ‘observado´´. Do contrário, aquilo que poderia ser uma séria denúncia de “blindagem à tortura”, pode parecer simples ativismo político contra a ordem estabelecida.

EDILSON MOUGENOT BONFIM
Procurador de Justiça Criminal MPSP
Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri
Professor convidado da Universidade de Aix-Marseille, França
Fundador da “Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais”