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Cláudio Henrique e Felipe Ribeiro no JOTA: MP pode estimular a normatização de temas não regulados pela Administração Pública

Inserido em 13 de maio de 2022
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O presidente da Amperj, Cláudio Henrique da Cruz Viana, e o diretor financeiro, Felipe Ribeiro, publicaram, nesta sexta-feira (13), no portal jurídico Jota, o artigo “Sem judicializar, Ministério Público tem muito a contribuir na regulação administrativa em matéria de direitos”. Eles abordam o desafio de “desjudicializar” os litígios provocados pela atuação discricionária da Administração Pública e o papel que o Ministério Público pode exercer para estimular o debate e um processo de autorregulação extrajudicial, com foco em proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.

“Nesta temática, o grande desafio é ‘desjudicializar’, na medida do possível, os litígios provocados por esta atuação discricionária. Os órgãos de controle, especialmente o Ministério Público, têm muito a contribuir neste campo”, afirmam Cláudio Henrique e Felipe. “O resultado disso será menos judicialização, menos arbítrio, mais alinhamento entre as instituições democráticas e mais resolutividade no campo dos direitos”.

Leia o artigo no portal JOTA e abaixo.

Sem judicializar, Ministério Público tem muito a contribuir na regulação administrativa em matéria de direitos

Todo cidadão brasileiro, da hora em que acorda até o seu descanso noturno, interage com a Administração Pública. Ao ligar o aparelho de televisão ou ao acender o fogão, autoriza que aquele consumo seja contabilizado na forma de tarifa, muitas vezes sem saber que aquela cobrança só lhe é exigível em razão de contrato administrativo celebrado entre o Estado e uma empresa prestadora de serviços.

De igual sorte, aqueles que mais dependem de serviços públicos essenciais, como os relacionados ao acesso à saúde e educação, interagem com as mais diversas autoridades, sujeitando-se às regras definidas pelo órgão público competente. Sem falar no convívio, nem sempre pacífico, com agentes de segurança pública nas ruas e no interior das comunidades mais carentes.
Portanto, a presença do Poder público na vida privada do cidadão é mais do que intensa; em maior ou menor medida, esta relação interfere diretamente em nossos direitos e liberdades, muitas vezes de forma acentuada.

É exatamente por isso que a Administração, dentro do modelo de tripartição dos poderes estatais, não pode atuar senão amparada na lei. A ideia de legalidade administrativa, representativa da “vontade geral”, autoriza o Estado a invadir o espaço de autonomia do indivíduo, concretizando o princípio segundo o qual o interesse público impresso na norma se sobrepõe aos interesses privados.

Até aí tudo bem. Acontece que a lei não é capaz de regular à exaustão todas as situações da vida. Neste ponto reside o perigo. A ordem jurídica, inundada por textos legais de linguagem muito aberta, acaba conferindo ao Estado poder muito amplo para interpretar a realidade, seja por meio de uma norma administrativa complementar seja através de interpretação direta da norma legal. No primeiro caso, a Administração Pública confere alguma densidade à legislação em vigor, autovinculando-se a balizas mais estreitas criadas por ela própria. No segundo caso, passa a tutelar a esfera privada do indivíduo com lastro apenas em legalidade rarefeita, agindo com ampla discricionariedade.

Em matéria de direitos fundamentais, parece-nos evidente que a complementação da lei por normas administrativas, sobretudo quando o Executivo cria oportunidades de participação de todos os envolvidos, permite uma maior proteção dos direitos e liberdades atingidos, sem retirar por completo do ente estatal o poder de disciplinar o tema, inclusive com a manutenção de espaços decisórios exclusivamente discricionários.

Na prática administrativa, infelizmente ainda é possível encontrar zonas de não-regulação administrativa. Ou seja, a Administração Pública, para manter sua ampla liberdade de atuação em diversas matérias – como, por exemplo, no campo da atividade policial e de políticas públicas setoriais –, tem deixado de exercer sua função normatizadora, evitando, com isso, se autovincular em temas muito sensíveis e com grande repercussão no campo dos direitos fundamentais. Em outras palavras, para manter seu poder discricionário de atuar conforme texto legal vago, abstém-se de normatizar determinado tema, garantindo a si mesmo a condição de interferir nos direitos do cidadão sem maiores balizamentos.

Perde o cidadão, que não sabe exatamente como se defender de uma investida da autoridade pública que se baseia em texto legal com linguagem que admite diversas interpretações; mas perde também o próprio Executivo, que passará a ser tutelado pelo Poder Judiciário que, ao fim e ao cabo, poderá conferir à norma, mesmo à distância da realidade administrativa, a sua própria interpretação.

Nesta temática, o grande desafio é “desjudicializar”, na medida do possível, os litígios provocados por esta atuação discricionária. Os órgãos de controle, especialmente o Ministério Público, têm muito a contribuir neste campo. Ao invés de fomentar a judicialização, conferindo aos textos legais sua própria interpretação – construída à luz de princípios constitucionais igualmente vagos –, a instituição pode trabalhar para estimular a normatização de temas pela própria Administração Pública no campo extrajudicial, por meio de um debate amplo entre os interessados, sempre com foco na definição de balizas mínimas e capazes de proteger o que mais importa: os direitos fundamentais dos brasileiros.

Identificado um tema sensível não regulado pelo Executivo, como, por hipótese, critérios de definição de vagas em creches municipais, o Ministério Público, antes de judicializar a questão para fazer valer seus próprios critérios, pode estimular esse processo de autorregulação extrajudicialmente.

Focado na proteção de direitos, mas sem negar o papel da Administração Pública na gestão da coisa pública, o Ministério Público reúne condições para liderar esse processo. O resultado disso será menos judicialização, menos arbítrio, mais alinhamento entre as instituições democráticas e mais resolutividade no campo dos direitos.

Cláudio Henrique da Cruz Viana é procurador de Justiça e presidente da Amperj.

Felipe Ribeiro é promotor de Justiça, diretor da Amperj e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito de Lisboa