Por Felipe Cuesta
Hoje vamos falar de literatura brasileira de qualidade. “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, um livro que já nasceu clássico e se tornou pré-requisito na formação de uma cidadania consciente, responsável e crítica, como outrora tivemos “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. A vantagem da obra em análise sobre as duas citadas é sua versatilidade narrativa como romance de ficção que resgata e retrata parte essencial do passado brasileiro e suas origens africanas. Não sendo mero livro técnico-científico de História do Brasil, oferece uma sofisticada trama que mistura episódios verdadeiros da memória do país com as pitadas saborosas do escrito ficcional. Comparável em importância aos romances “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, ou “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.
“Um Defeito de Cor” é um romance de formação, cuja estrutura narrativa bebe na fonte do Bildungsroman alemão, o maior legado germânico em prol da literatura universal. O romance de formação caracteriza-se como modalidade do gênero romance, cujo enfoque se baseia no acompanhamento do processo de transformação ou amadurecimento do protagonista, decorrente das adversidades pelas quais ele passa ao longo de sua trajetória. É exatamente o que acontece no itinerário de Kehinde, a protagonista.
O livro tem dois aspectos que podem ser inconvenientes a alguns e devem ser levados em consideração. Primeiro: é um calhamaço com cerca de mil páginas no total. Não se deixe enganar ou abater por isso, nem fuja da leitura pelo tamanho. Vai com calma, degustando a narrativa. A trama é articulada e envolvente, contando com uma miríade de personagens intrigantes e bem construídos, que desfilam suas histórias de vida se servindo da prosa fluida e deleitosa da autora. Segunda ressalva: o livro possui muitos gatilhos de violência e de violência sexual em sua primeira metade.
Antes de entrar nos pormenores do enredo, vale comentar o título: “Um defeito de cor” era um decreto absurdo que exigia a pessoas negras que quisessem ingressar no clero ou em serviço militar o dever de solicitar a dispensa do tal defeito de cor — ou seja, como um pedido de desculpas formal pela tonalidade da sua pele. Em outras palavras, era uma prática burocrática comum do Brasil colonial. Pessoas pretas interessadas na obtenção de certos privilégios e de graças do Estado ou do Clero precisavam requerer dispensa de consideração de sua cor, como condição para fruição do favor. O requerente era forçado a reconhecer formalmente um “defeito”, uma mácula em sua condição originária de preto, sendo que o humilhante pleito de desconsideração de seu fenótipo era um requisito para possibilitar a mobilidade social almejada. A função do título é mesmo a de explicitar o constrangimento com a situação e fazer o leitor sentir na pele a empatia indignada perante as dificuldades impostas a essa parte da população.
Para escrever o livro, a mineira Ana Maria Gonçalves, descendente de pretos, que não tinha ainda nenhum grande retrospecto literário no currículo, trilhou um árduo caminho pelo deserto do tempo, num total de cinco longos anos de dedicação exclusiva ao projeto — os dois primeiros só no trabalho de pesquisa de campo, depois mais um redigindo a versão original e os últimos dois na batalha da reescrita. O livro vem sendo um sucesso editorial desde seu lançamento em 2006 pela Editora Record, já tendo ultrapassado quarenta edições e mais de cento e cinquenta mil exemplares vendidos. No último carnaval, serviu de inspiração para o enredo da escola de samba Portela e segue sua trajetória mundo afora, já traduzido para vários idiomas.
A protagonista é a narradora contando sua história em primeira pessoa, a saga de uma mulher preta em pleno período escravocrata. O tempo presente da narrativa já é o momento final de sua vida. Kehinde, bastante idosa e debilitada, após ter retornado à África, está desapontada com a dissonância entre a expectativa e a realidade do que encontrou no continente-mãe e passa a trilhar a retrospectiva de sua existência.
“Um Defeito de Cor” é a vida toda de Kehinde desde quando, aos oito anos, foi capturada por traficantes mercadores de escravos em uma praça na capital portuária do Reino do Daomé, atual Benin, junto com sua irmã gêmea e trazida ao Brasil nos porões de um navio negreiro, em uma viagem tão hostil quanto mortal, para, sobrevivendo às armadilhas da fome, das doenças, do banzo e da falta de condições de higiene, ser vendida e escravizada na Ilha de Itaparica, na Bahia, onde começa sua jornada em terras brasileiras.
Mais tarde, após ser escrava de latifúndio, consegue a muito custo sair para tentar uma vida melhor como escrava de companhia, o que a leva para Salvador e depois para uma série de outras viagens em busca de um filho desaparecido, passando por Rio de Janeiro, Santos e o Maranhão. No romance, são abordados seus amores, as desilusões, os sofrimentos, a obtenção da liberdade e sua transformação em empresária bem-sucedida, além da religiosidade e da angústia pela incompreensão de suas raízes e a sensação de pertencer a lugar nenhum, com os desafios e os percalços inerentes ao processo, em que a consciência sobre si mesma passa sempre pelo olhar do outro.
O livro é uma aula sobre a formação da sociedade brasileira e sua ligação perversa com o processo de escravização e aniquilamento moral de um povo, recriando uma ambientação perfeita das cidades de Salvador e do Rio de Janeiro na época do império. Deveria ser obrigatório nas escolas do ensino médio, pois cria empatia na mente de quem o lê. Destaque adicional para a riqueza de informações sobre a religiosidade afro aqui no Brasil no início do século XIX. Não apenas do candomblé, mas também dos chamados muçurumins (adaptação africana do muçulmanismo) que aparecem como um grupo religioso importante na luta pela liberdade dos escravizados. É com eles que a protagonista irá conhecer várias formas de resistência ao regime escravocrata, como é o caso das confrarias. Essas eram organizações em que seus membros pagavam uma mensalidade e com este dinheiro compravam alforrias em consórcio. Assim, o livro mostra algumas formas de resistência mais brandas, que nem sempre sabemos que existiam aqui, e reproduz com detalhes um episódio histórico conhecido como Revolta dos Malês, movimento liderado por escravizados muçulmanos a favor da Abolição.
Marcado por dissabores e reviravoltas, o romance entretém, arranca lágrimas e causa tristeza e indignação, apresentando um panorama sombrio do que significa ser preto numa sociedade escravocrata, desigual e segregacionista. É impossível sair dessa leitura sem se sentir simultaneamente envergonhado e transformado pelo poder quase mágico do texto em nos fazer, entristecidos, tomar consciência ainda mais próxima do flagelo e da diáspora enfrentados por uma parcela relevante de nossa população, moralmente aniquilada e que até hoje luta pelo reconhecimento e pela reparação por tantas violações.
De certo, consumir autores negros e bem conhecer suas histórias não nos faz automaticamente antirracistas. Isso é óbvio. Dizer o contrário seria hipocrisia. É difícil compreender quando não se presta atenção. Prestar atenção é sempre o primeiro passo. Clara também, em tempos tão delicados, a necessidade de lutar por direitos tão fragilmente conquistados e ainda em processo de consolidação. Formar uma postura antirracista autêntica nos exige reflexão permanente e abertura de escuta em todos os campos da vida. A leitura dessa obra pode contribuir. Somos todos corresponsáveis.
Um Defeito de Cor. Editora Record. 28ª edição. 952 páginas. Valor de capa: R$ 119,90.
Boa leitura!
O promotor de Justiça Felipe Cuesta escreve textos quinzenais no site e na newsletter da Amperj, nos quais comenta sobre tudo relacionado a literatura — de reflexões sobre leituras impactantes a recomendações de livros.