Por Felipe Cuesta
“Eu não vou ficar perdendo meu tempo lendo Jane Austen, chato pra caramba! Literatura de mulherzinha, romance água com açúcar sem graça, datado e ultrapassado, que só fala de expectativas de casamentos e de paixões conturbadas.” Se alguém soltar essa na sua frente, espera a pessoa terminar, pois você é educado. Depois, olhe pra ela com uma fisionomia enigmática e bota a mão direita no queixo. Fica parado, desvia o olhar pros lados, como que procurando por algo e deixa passar uns dez segundos para criar aflição. Em seguida, junta as mãos ou põe uma delas no bolso, aperta os olhos, expira e manda: “como assim?” O seu interlocutor, desconcertado, vai devolver a pergunta rápido: “como assim o quê?” Aí você não diz mais nada, se despede e sai. Se for para ficar, muda de assunto e pergunta se ele acha que vai chover ou quanto foi o jogo.
A verdade, brincadeiras à parte, é que Jane Austen foi uma mulher de vanguarda em seu tempo. É clichê mesmo, dos brabos, mas não dá pra escapar. Ela foi protagonista em uma época em que as mulheres nunca estavam à frente de nada. Forjou uma literatura conhecida por suas observações ácidas e perspicazes sobre a sociedade e a classe média alta da Inglaterra georgiana. Austen queria detonar as convenções e chamar a atenção para as barbaridades e incoerências vigentes. Austen usou seus romances como pontes para criticar a estrutura social da época, especialmente nas limitações enfrentadas pelas mulheres. E ela era muito talentosa para cutucar o castelo de cartas da hipocrisia, até por ser também vítima dele. Detentora de um aguçado senso de investigação social, a autora inglesa desfilava um olhar debochado para as falhas, vaidades e mesquinharias humanas, sendo dona de um estilo literário marcado por ironias sutis e diálogos afiados (talvez as maiores digitais de seu texto), além de possuir enorme talento para desenvolver personagens realistas e complexos que causaram impacto e permanecem atemporais, tamanha a verossimilhança de seus perfis. Jane Austen foi genial.
E, mesmo com tudo isso, a trajetória foi espinhosa. Filha de um pároco, teve acesso a alguma educação formal e a sorte de crescer num ambiente em que a leitura era habitual na família. Durante a vida, mesmo se dedicando escondida e empenhada aos seus romances, teve uma existência singela, limitada ao espaço da casa e aos afazeres domésticos da família, morrendo aos 41 anos envergando uma carreira literária discreta. Sem que seus romances tivessem obtido o devido reconhecimento. Tinham alguma popularidade. Fato. O que não tinham, ou não podiam ter, era o nome dela na capa. Algumas pessoas sabiam, devido a indiscrições de familiares. O que aparecia para o público era o pseudônimo “By a Lady”. Somente em sua lápide é que seu nome passou a constar publicamente em conjunto com o título de suas obras. Assim, o público soube finalmente ser ela a autora de romances tão importantes e já conhecidos.
Austen tinha noção de sua capacidade de fabricar literatura de alta qualidade. Inconformada, transfere todo seu desapontamento pela situação de anonimato a que era forçada para suas tramas. Como por exemplo através da frase de uma personagem: “os homens tiveram todas as vantagens em relação a nós no que diz respeito a contar sua versão da história. Eles tiveram uma educação muito mais refinada; a pena sempre esteve em suas mãos.”
Na esteira das observações de Guardini Vasconcelos, a condição de integrar o mesmo grupo social de que tratam seus romances deu à escritora a chance de observar a civilizada ordem social e os costumes vigentes, escancarando suas falhas, mediante o emprego de grandes doses de sarcasmo e de ironia. Ela se sabia enorme. O que torna mais difícil aceitar seu ostracismo forçado. E seu legado ficcional contém toda uma experiência histórica.
De estética minimalista, seus romances são pequenas esculturas onde ela lavra com esmero marcas de sua época e inscreve sua visão de mundo e sua impressão sobre a condição inferior das mulheres, em um formato que detém controle total da narrativa, precisão na articulação da voz e na construção de seus pontos de vista.
Por todos esses predicados, temos que dar um enorme crédito a essa escritora fenomenal. Ela não escreveu meros romancezinhos água com açúcar, narrando as palpitações aceleradas e descompassadas dos corações de umas jovens mocinhas apaixonadas. Não! Ela foi muito mais! Ler Jane Austen é diferente de ler Sabrina, Bianca ou Julia, aquelas novelinhas em fascículos que saíam nas bancas de jornais. Jane Austen é uma crítica implacável da sociedade inglesa do século XVIII e XIX e apresenta seus contundentes posicionamentos mediante o desfile de lendários personagens que nos dão a impressão de serem nossos amigos íntimos, pessoas reais que conhecemos, tamanha a verdade contida em seus perfis e temperamentos. Ao longo da leitura, nos vemos vivendo suas vidas e nos identificando com elas. Jane Austen fala conosco e escreve sem afetações nem intermediários. E parece uma terapeuta dos relacionamentos humanos.
“Orgulho e Preconceito” é sua obra prima. Neste clássico da literatura mundial, Jane Austen constrói alguns dos mais perfeitos diálogos sobre a moral e os valores sociais da pseudoaristocracia inglesa. Com uma frase célebre, ela começa o livro: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro e muito rico deve precisar de uma esposa”. Na Inglaterra do final do século XVIII, as possibilidades de ascensão social eram limitadas para uma mulher sem dote. Elizabeth Bennet, de vinte anos, uma das cinco filhas de um espirituoso, mas imprudente senhor, no entanto, é um novo tipo de heroína, que não precisará de estereótipos femininos para conquistar o amor do nobre Fitzwilliam Darcy e nem para defender suas posições com a lucidez de uma filósofa liberal da província.
O amor de Elizabeth e Darcy não acontecerá de imediato, sem que antes nutram uma antipatia severa e recíproca. Não se trata aqui do famoso clichê do amor à primeira vista idealizado. Nada disso. No caso deles é desprezo e indiferença à primeira vista. E muita farpa embutida. As coisas só mudarão de perspectiva quando enfim Darcy e Elizabeth, após uma sequência quase insuperável de desencontros e de impressões erradas, enfrentarem situações de vida que farão com que consigam se enxergar com empatia, para então se darem conta da gigantesca carga de orgulho e de preconceito que movia as impressões anteriores e recíprocas sobre cada um, sendo capazes de começar a partir de tal ponto, a reconfigurar a perspectiva vigente entre ambos.
Mas a história tem início quando o Sr. Bingley, amigo de Darcy, que por este se faz acompanhar, decide passar alguns dias livres na casa vizinha à da família Bennet, causando alvoroço na matriarca desta família de classe média, ávida por arranjar um bom matrimônio para algumas de suas filhas, especialmente Jane e Elizabeth. Aparentemente, a história de amor do romance é entre Bingley e Jane, a irmã de Elizabeth Bennet. Como ponto de partida comum nesse tipo de enredo, há um obstáculo para o amor dos dois, pois as irmãs do jovem não concordam com tal relação, por Jane não estar socialmente à altura dos Bingley. Entretanto, logo percebemos que a orgulhosa Elizabeth é a protagonista. Após ser ignorada por Darcy, no primeiro baile apresentado no livro, seu orgulho a impede de perceber o verdadeiro caráter do rapaz. E sua antipatia por ele só faz aumentar, até que acontecimentos posteriores da narrativa permitem que Darcy evidencie seu verdadeiro caráter e então consiga conquistar o coração da protagonista, permitindo que eles componham um dos casais mais queridos e emblemáticos da literatura de todos os tempos.
Lizzy é uma espécie de Cinderela do universo austeniano, nessa obra em que a escritora embute uma crítica importante à futilidade das mulheres na voz dessa admirável heroína — recompensada, ao final, com uma felicidade que nunca fizera parte de seu objetivo único de vida, nem lhe parecia possível na classe em que nasceu, tampouco na situação em que inicialmente conheceu seu futuro marido.
Gostar de ler Jane Austen e de valorizar a sua obra não tem nada a ver com gênero nem com ser homem ou ser mulher. Tem mais a ver com a capacidade da pessoa em ser uma leitora atenta e aberta para que o texto viabilize a captação (ou até a transformação) de sua visão de mundo e de suas maiores ou menores sensibilidades e suscetibilidades sobre as questões tratadas, geralmente afetas a todos e a cada um de nós, sem exceção.
Daí, e por isso, surgem os romances universais. As referências absolutas do cânone literário mundo afora. Jane Austen é universal. Ocupa cadeira cativa no panteão das maiores escritoras de todos os tempos. E está também no imaginário da cultura pop. Ela é a gênese de um gênero literário e a bisavó das comédias românticas tão adoradas pelo público e blockbusters de hoje em dia, seja nas livrarias ou nos cinemas. Mas sua literatura não se restringe a isso. Vai além. E deixa rastros e esclarecimentos essenciais sobre muitas das questões fundamentais da arte da existência humana.
Sua importância é majoritária. E “Orgulho e Preconceito” talvez possa ser a melhor história de amor da história da literatura por apresentar personagens compatíveis com o mundo real, por dar chance às segundas chances, por nos fazer perceber que o amor verdadeiro depende da empatia, além de nos ensinar que é possível errar e ainda assim se arrepender e corrigir a rota para viver o que se deseja.
Leia logo Jane Austen se você ainda não fez. Se já leu, leia de novo para melhor assimilar seus ensinamentos.
Orgulho e Preconceito, Penguin-Companhia, 1ª edição, 21 de junho de 2011. 576 páginas. Preço sugerido: R$ 74,90.
O promotor de Justiça Felipe Cuesta escreve textos quinzenais no site e na newsletter da Amperj, nos quais comenta sobre tudo relacionado a literatura — de reflexões sobre leituras impactantes a recomendações de livros.