Hoje vamos falar de um escritor franco-argelino bastante conhecido e cultuado. Albert Camus. O sujeito era bom pra caramba na caneta, apesar de meio surtado das ideias. Poderoso escritor que detinha um estilo de escrita lacônico. Muito eficiente para mostrar o efeito de desolação e indiferença no comportamento de seus personagens, fonte constante de perplexidade e aflição nos leitores, que não raro se chocam com a ausência de motivação maior no atuar dos seus protagonistas. As sequências de fatos do cotidiano na prosa camusiana parecem um mero desdobramento do acaso. Ode à estética absurdista, uma interpretação do existencialismo filosófico que pontua a falta de sentido da vida. Camus veio então ao mundo nessa vibe. Mais para confundir do que para explicar. Para ele, é inútil buscar o significado da existência e das ações das pessoas. A coisa não tem significado, e cavar explicações seria desperdício de tempo e de energia.
”Gostaria de tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeição, que nunca conseguira arrepender-me de verdadeiramente nada.”
Camus, influenciado por Franz Kafka, propagou o seu existencialismo absurdo através de importantes obras, entre elas, as curtas, porém profundas “O Estrangeiro” e “A Queda”. Por meio de sua escrita, transmitiu de maneira única todo um pensamento filosófico complexo e peculiar. Trataremos de sua magnum opus: « L’ Etranger », um livro enxuto, repleto de argumentos sólidos e com uma trama aterradora. O Estrangeiro é a grande conquista do escritor. O terceiro livro francófono mais lido e difundido de todos os tempos. Perde para O Pequeno Príncipe e Os Miseráveis. A narrativa representa as desventuras do homem do século XX. A Magnum opus de um dos escritores mais cultuados e respeitados de todos os tempos, igualmente vencedor do Prêmio Nobel de literatura.
O Estrangeiro tem como protagonista um sujeito chamado Meursault, francês que vive na capital argelina na época em que o país ainda era colônia francesa. O homem nos narra os seus últimos dias de vida, e o romance começa com a leitura de um telegrama que lhe informa sobre o falecimento de sua mãe. “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei.” A abertura de “O estrangeiro” é uma das mais famosas da literatura. Já de cara temos pistas que o protagonista é alguém distante do convencional. Ele recebe a notícia e então viaja para enterrá-la, mas, indiferente à situação, fica incapaz de derramar uma lágrima sequer durante o funeral, não se emocionando nem se compadecendo diante de qualquer sofrimento possível. Não faz questão de ver o corpo, muito embora tenha curiosidade em verificar os efeitos do calor e da umidade na sua decomposição. A morte dela não muda nada em sua vida.
Meursault é um tipo solitário, contemplativo e soturno, que faz amizade com um vizinho cafetão, flana por Argel e descreve seu cotidiano vazio e banal. Ele não tem a ambição de avançar em sua carreira profissional, ele é indiferente a estar com amigos. Aceita se casar com Marie, por vontade dela apenas, deixando claro que não a ama e que para ele não faz a menor diferença casar ou não. Mantém um distanciamento irônico de todas as coisas e sentimentos, típico de um herói concebido do absurdo, não participando ativamente da vida nem se envolvendo com ela. Vive o presente, apenas, livre de qualquer sistema de valores e julgamentos. Se Albert Camus tivesse uma proposta literária menos autêntica e mais comercial, poderia facilmente ter transformado o seu anti herói em um serial killer.
Pois bem. No momento crucial do livro, Meursault mata “um árabe” que estava deitado numa praia e põe a culpa no sol. Não há explicação maior para o assassinato banal. Os raios de sol são os mandantes do crime, pois teriam lhe bagunçado os pensamentos e a visão. Meursault mata sua vítima com um tiro e, depois, dispara mais quatro no cadáver. A cena é forte e paralisa o leitor. Um primor literário. Uma descrição impecável. Posteriormente, Meursault, assassino confesso, será preso, julgado e condenado à morte, mais por ser um misantropo insensível do que pelo seu crime sem testemunhas e sem grande repercussão. Ele matou apenas um “um árabe”, cuja identidade jamais será mencionada no livro.
A ausência de nome da vítima deu muito pano pra manga. Como o escritor não deu nenhuma explicação, a galera criou algumas teorias. Por que Albert Camus ignorou solenemente a pessoa morta por Meursault? Há quem acredite que o autor quis demonstrar todo o desprezo dos franceses colonizadores pelos argelinos colonizados — o livro é de 1942, e a Argélia se tornou independente só em 1962. Há ainda quem diga que o árabe não tem nome apenas para justificar a insensibilidade de Meursault e a banalidade de seu crime, ou seja, um truque literário para dar sustentação à história narrada. Faz bastante sentido essa explicação e para mim eu acredito que este tenha sido o motivo. O “árabe” é assim mencionado mais de duas dezenas de vezes ao longo do livro e este mistério é um dos muitos atrativos da narrativa.
Na segunda parte ocorre o julgamento e a condenação do protagonista. Interessantes argumentos utilizados pelo promotor para convencer o júri da sua culpabilidade, menos pelo crime em si, já que se tratava de “um árabe” qualquer mas, principalmente, pela ausência de empatia e conexão do mesmo com a vida e pelo absurdo de seu comportamento. Como não ter chorado no enterro de sua genitora e ter se envolvido com uma ex-colega de trabalho no dia seguinte ao funeral, sem guardar qualquer espécie de luto.
Ou seja, ele acaba sendo condenado mais pelo que é (ou demonstra ser) do que pelo que fez. Meursault só vai ficar um pouco menos indiferente quando se der conta que o seu futuro está nas mãos de pessoas que nem o conhecem. Após a sentença, Meursault mergulha em profundas reflexões, avalia os rumos que sua vida levou e chega a conclusões que causarão um grande impacto no leitor. E sente certo deleite ao perceber que a turba deseja a sua morte ao final. Paradoxalmente, talvez daí tire algum sentido para sua existência vã.
O existencialismo de Camus se estabelece no absurdo, pois a constatação da ausência de um porquê é a conclusão que se chega ao se debruçar sobre a liberdade do indivíduo. Se não há uma essência prévia, um plano a ser seguido, um destino certo, pode-se tudo. Para Camus, a vida, no final das contas, é absurda e não faz o menor sentido, pois não existe um poder superior, benevolente e onisciente presidindo os acontecimentos do universo. Não existe uma coisa chamada destino, ou qualquer outra força impessoal predeterminada. Pois se tudo é absurdo, não há regras sobre a coerência do certo ou do errado. Tudo seria relativo, em prol do caos e da desordem. São sempre escolhas aleatórias dos indivíduos que vão determinando a sequência da existência de cada um. Diferentemente da visão menos “desesperadora” de Sarte, Camus se orienta pela ampla liberdade do indivíduo, carregada de toda aquela angústia que sua constatação acarreta, enseja no absurdo da vida, das coisas, da existência.
Albert Camus viveu uma vida intensa. O seu trabalho profícuo inclui peças de teatro, novelas, notícias, filmes, poemas e ensaios, onde ele, como já visto, desenvolveu um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição humana e na revolta como uma resposta a este absurdo. Para Camus, essa revolta leva à ação e fornece sentido ao mundo e à existência. O escritor morreu jovem, aos 46 anos, em janeiro de 1960, vítima de um acidente de automóvel. Na sua maleta estava contido o manuscrito de O Primeiro Homem, um romance autobiográfico. Por uma ironia do destino, nas notas ao texto, ele escreve que aquele romance deveria ficar inacabado.
Camus não pretendia ter feito a viagem a Paris de carro, com seu editor Michel Gallimard, a mulher deste, Janine, e a filha deles, Anne. Pretendia ir de trem, com o poeta René Char. Já haviam até comprado as passagens. Mas, por insistência de Michel, ele aceitou a boleia. Char também foi convidado, mas não quis lotar o carro. A vinte e quatro quilômetros de Sens, na Rodovia 5, entre Champigny-sur-Yonne e Villeneuve-la-Guyard, o Facel-Véga, depois de uma guinada, sai da estrada em linha reta, se arrebenta contra um plátano, ricocheteia para cima de uma outra árvore e se espatifa. Michel, o motorista, sai gravemente ferido [morreu cinco dias depois], Janine ilesa, Anne também. O cachorro desaparece, e Albert Camus morreu na hora. O relógio do painel é encontrado bloqueado às 13h55. A seus amigos, Camus dizia com frequência que “nada é mais escandaloso do que a morte de uma criança, e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel”.
Cinquenta anos depois, revelações do escritor e tradutor checo Jan Zabrana, contidas em seu diário publicado postumamente, sugerem como teoria da conspiração a possibilidade de que Camus tenha sido, de fato, assassinado, por ordem do Ministro das Relações Exteriores da antiga URSS, em retaliação à oposição aberta que o escritor vinha fazendo a Moscou. responsabilizando-o pelo que chamou de “massacre”, durante a repressão soviética à Revolução Húngara de 1956. Acho pouco provável essa tese, mas é curioso refletir sobre tais especulações descabidas. Elas movimentam o ambiente literário.
Nada de fundir a cuca, ok? O cara viajava mesmo. E está tudo bem! Mas “O Estrangeiro” é um livrinho porreta. Dá uma conferida nele e constate por conta própria a potência do veneno literário do sujeito. Até a próxima.