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O que é Poesia? Qual seu sentido?

Inserido em 10 de outubro de 2025
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Depois de tantos artigos tratando de prosa e de romances literários dos autores que mais gosto, hoje vamos mudar de assunto. Pois bem, fica o convite e desde o começo a pergunta/provocação: O que é poesia? Pergunta difícil! Quando não há como encontrar um sentido de mão beijada, o desafio se resolve pela criatividade e pela insistência. A poesia deveria prestar mais a se sentir do que a se definir. Na minha caixinha subjetiva de conceitos, vou tentar buscar maneira de fazer. Vou devagar. 

Não há nada na cabeça previamente pensado. A reflexão acontece agora, de improviso. Enquanto elaboro o texto. Difícil decorar sentimentos. Paro e penso sobre o que poderia ser e me deparo com ideias desorganizadas que dão ponto de partida. Deixa eu tentar. Poesia, antes de mais nada, é falar com o coração. É forma de encarar a vida com mais contemplação e menos objetividade. Tipo um estado de espírito. A poesia exige desconstrução de conceitos, embaralhar estímulos e sentidos no liquidificador e, com o resultado, distribuir coerência lírica. 

É se afastar das definições semânticas dos dicionários e encontrar definições vindas da alma e do coração. É desacelerar e desconectar do modo automático da rotina da vida e dar uma chance para a sensibilidade contemplativa que existe em cada um de nós. Poesia é dizer qualquer coisa de maneira muito mais bonita. Poesia é desembrutecimento. E descoberta. Pode morar em qualquer lugar, inclusive na prosa.

Então, vou falhar feio para conceituar poesia. Poesia é muito mais sobre sentir. E cada um sente do seu jeito. Poesia não é pra fazer sentido. Poesia foi feita para encurtar o caminho até as emoções. Pronto.

Mas tem sempre alguém que vai dizer: “Lindo isso mas, queria um conceito de verdade”. Então tá. Bora tentar seguir. Como definir poesia sem fazer poesia? Por incrível que pareça, a poesia é um gênero literário pouco explorado por grande parte dos leitores. Estranho. Pois era para ser o ponto de partida de todo mundo. Como engatinhar. Ninguém te ensina. Engatinhar é instintivo. Lirismo também é. Só falta em nós o treino atento de se observar. De olhar pra dentro. Poesia não precisa de preparo nem de experiência. A correria do dia a dia nos afasta desse movimento natural. 

Se a pessoa tiver sentimentos dentro dela, já pode começar. Basta desacelerar e dar um tempinho a si mesmo, esperando a magia acontecer. Então, não sei explicar por que a maioria das pessoas que lê se afasta dela. Mais comum a pessoa ler autoajuda, romance policial, quadrinhos ou romances eróticos ou de vampiros. Da poesia, quase todo mundo foge. Alguns devem achar desimportante, enquanto outros, inalcançável e talvez mais uns tantos, sem graça. Tem gente que confunde poesia com rima. Poesia não é rima. Poesia pode ser ou estar rima. Mas vai além. Longe. Ela está em todos os lugares.

Mas a poesia também pode deixar de ser poesia e ser encapsulada em um sentido técnico. Vejamos o que encontro no Google: “Poesia é como chamamos o conteúdo de um texto literário marcado pela conotação, ambiguidade e estranheza e que se caracteriza também por ser subjetivo e plurissignificativo. É uma das sete artes e um modo de expressar a linguagem humana. A poesia pode ser escrita em versos ou em prosa e não deve ser confundida com o poema, que é uma mera estrutura textual. Poema é um texto literário escrito em versos, que são distribuídos em estrofes e que pode ser lirico, narrativo ou dramático.”

Esse conceito aí acima fez o negócio perder metade da graça. Não tem lirismo algum ali. A definição de poesia aqui não foi nada poética. Um paradoxo que me faz parar. Não gosto dos conceitos herméticos. Quero voltar pro lúdico.

Há quem diga que a poesia é a fala dos sonhos. E o amor, a poesia dos sentidos. E a música? Segundo Beethoven, a melodia é a via mais divina da poesia. A pergunta “o que é a poesia?” é tão ou mais velha quanto a própria humanidade. E, nesse caso, o que nos é dado saber chegou até nós por meio dos livros, tradições orais e imaginários coletivos. Talvez, então melhor do que o ser humano fazer a pergunta “o que é a poesia?”,  acho que a poesia é quem devia perguntar ao homem (e responder):  o que é o Ser Humano? E, assim, todos os poemas que já foram escritos se prestariam, cada um um pouquinho, a responder a pergunta. Para que a objetividade lírica da poesia encontre então o subjetivo do humano e a fusão esteja completa, mesmo sendo processo contínuo e interminável. Eterno.  Ao menos enquanto dure. 

Gosto ainda das definições de Hilda Hilst e de García Llorca: “A poesia sempre me pareceu um mistério, você não sabe dizer o que é, ela acontece ou não acontece”. Hilda Hilst.  Ou “A união de algumas palavras que ninguém poderia supor que se juntariam dessa maneira, e que formam algo como um mistério.” Federico García Lorca

E os poetas? É preciso falar deles! Seres tidos como esquisitos, incompreendidos e movidos a devaneios. Eles, que traduzem o mundo do preto e branco para as cores. Ser poeta é ser tudo e não ser nada ao mesmo tempo. Poesia não é mero ofício, mas maneira de ser e de encarar a vida. É dom que escapa pelos poros. Ser poeta não cabe apenas em expressar emoções e ter a visão de mundo através da arte das palavras. É preciso sensibilidade, criatividade conexão com o entorno, com a vida e com o universo. Só assim se alcança a alquimia dos versos e estrofes. É ambiguidade. É construção e desconstrução. Certo e errado. Doce e salgado. Claro e escuro. Amor e ódio ou bem me quer, mal me quer. Mais que escrever, é forma de vivenciar o desconhecido e de tentar desvendar o que não se pode desvendar. Ninguém escolhe ser poeta. A poesia é quem os escolhe. Os eleitos. Ela que vai buscar os poetas, para darem cabo de suas exigências enquanto arte de materializar sentimentos no papel.

Afonso Cruz tem um livrinho “Vamos comprar um poeta”. Duas passagens  desse livrinho lindo me fazem refletir horas a fio: 

“No outro dia, na escola, perguntaram-me para que é que eu queria um poeta. Disse que gostava de poemas. Inutilista!, gritaram. Vocês não percebem que eu estou a acumular cultura? Para quê? Para montes de coisas. Montes? Isso é uma quantidade? Gasta um bocadinho connosco para demonstrar o valor da transação. Irritei-me e respondi, muito agressiva: A cultura não se gasta. Quanto mais se usa, mais se tem.”

“Não estranhem se os virem parados, os poetas, muito tempo como se estivessem a fazer contas. Não estão, são incapazes da soma mais elementar. Essas paragens são precisamente os momentos em que começam a fazer poemas nas suas cabeças. É um processo fascinante.”

E a poesia? A poesia se embrenha em todas as coisas, especialmente nas manifestações artísticas. Ela não é, nem está só no verso. Vai além. Daí porque talvez ela tenha nascido cinco minutos antes do nada, parafraseando Nelson Rodrigues. Pois quando se fala de poesia, não é apenas de poesia que se quer falar. Aqui tratamos poesia como epifania do fenômeno poético, revelador da essência lúdica do que interessa, daquilo que se materializa como belo e que confere a qualquer obra de arte o estatuto de obra de arte. Pode ser música, pode ser escultura, pode ser pintura. Pode ser o teatro, a dança, o cinema e, claro, a literatura, nosso ponto de partida e de chegada por aqui. 

Tudo que é nomeado como arte em sentido genérico, se justifica e se valoriza tanto quanto pela poesia que contém, pois se não tiver poesia não será cinema, nem teatro, nem pintura, nem literatura. Não tendo poesia, é tudo menos arte. É assim que entendo a questão. Só a poética libera as coisas da mesmice. Por exemplo, se percebemos a poesia de uma pedra, libertamos a pedra de sua ‘pedridade'” e ela pode ser qualquer coisa na  função do belo e da forma. 

A obra artística que traz poesia em sua essência, portanto, vem de outro lugar, de uma instância mais alta, alcançada ocasionalmente pelo artista que trilha sua busca incessante. A arte, a ficção e a cultura constroem tudo o que somos, ou ao menos tudo o que importa na nutrição do espírito. 

E a poesia na sua porção poema? Ela pode ser tanto “A Tabacaria” de Fernando Pessoa, como um soneto de amor de Neruda. Pode ser também os versos precisos e potentes de um Manuel Bandeira, o rei da poesia modernista brasileira, como uma questão de métrica e forma de um Olavo Bilac. Pode ser bucólica como as estrofes de Manoel de Barros ou Walt Whitman em suas folhas da relva, ou dramática como os intensos sofrimentos de amor de Florbela Espanca. Pode ser o simbolismo místico e a introspecção de Baudelaire, como também a ruptura do modelo tradicional em quase prosa versada, como TS Elliot ou Wislawa Szymborska. 

Para terminar, uma degustação pequena de dois poemas que me fazem melhor: 

 

1:

Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia –
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

— Poema “Alguns Gostam de Poesia”, Wislawa Szymborska, poeta polonesa. Prêmio Nobel de literatura.

 

2:

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

— O último poema, Manuel Bandeira. 

 

Pois então é isso. Poderíamos ficar aqui dias e dias a fio. Poesia não tem fim, ao contrário desse texto, que já deve acabar.

 

O promotor de Justiça Felipe Cuesta escreve textos quinzenais no site e na newsletter da Amperj, nos quais comenta sobre tudo relacionado a literatura — de reflexões sobre leituras impactantes a recomendações de livros.

Foto: Pixabay