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A importância da atuação do Ministério Público na defesa dos direitos fundamentais de familiares de pessoas desaparecidas – corpos identificados e “não reclamados”

Inserido em 16 de setembro de 2019
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Fernanda Nicolau Leandro Terciotti[1]

 

SÍNTESE DOGMÁTICA

A questão do desaparecimento de pessoas é um problema amplo e complexo, e como principais dificuldades no seu enfretamento dois pontos merecem destaque. A primeira dificuldade repousaria no fato de que sob o título de desparecimento são tratadas situações completamente distintas, que podem envolver crianças, pessoas com algum tipo de deficiência mental, pessoas acauteladas no sistema penitenciário, pessoas já falecidas, entre outras hipóteses. A segunda dificuldade seria verificada nos procedimentos adotados para se tentar localizar essas pessoas, sendo certo que, na verdade, não há muitos procedimentos pré-estabelecidos e adotados de forma eficiente nos diversos locais onde essas pessoas são procuradas e onde são realizados registros dos desaparecimentos.

Visando dar atenção a casos de desaparecimentos de pessoas ocorridos no Estado do Rio de Janeiro, o Ministério Público Estadual (MPRJ) desenvolveu o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID) em 2012, que em 2017 foi incorporado ao rol de projetos do CNMP, formando o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (SINALID). Após cinco anos de atividade do PLID, o Centro de Pesquisas e Inovações do MPRJ (CENPE) realizou o diagnóstico do funcionamento do Programa, com a sistematização das informações existentes e o levantamento de casos emblemáticos de desaparecimentos. Esse projeto, dentre outros aspectos, jogou luz aos casos de pessoas que eram enterradas como indigentes apesar de apresentarem identificação no momento do óbito. Os ditos corpos identificados e não reclamados.

De posse do referido relatório de atividades desenvolvidas pelo PLID, e verificando o tratamento aos casos envolvendo corpos “não reclamados” junto ao Instituto Médico Legal fluminense, a Assessoria de Direitos Humanos e Minorias apresentou representação perante as Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania da Capital, tendo sido instaurado o IC 2017.00845559. Neste procedimento, foram analisadas as falhas e omissões do Poder público e adotadas diversas medidas com o fim de tutelar os direitos e garantias da pessoa humana, principalmente dos familiares das pessoas inumadas como “indigentes”, por serem classificados como “não reclamados”, apesar de tratar-se de pessoas identificadas, como será demonstrado a seguir.

FUNDAMENTAÇÃO

1 – Dos procedimentos adotados pelos órgãos estatais nos registros de desaparecimentos e da omissão do Poder Público na busca de familiares de corpos identificados e “não reclamados”.

No relatório de atividades do PLID verificou-se que alguns corpos que se encontravam no IML eram identificados, mas em razão de serem considerados não reclamados por familiares, após um determinado prazo, (em média 15 dias) eram enterrados como indigentes. O problema é que em muitos casos tais pessoas estavam sendo procuradas por familiares, alguns deles há anos, e em razão de falhas do Poder Público, mais especificamente da estrutura e dos procedimentos adotados pela Polícia Civil, incluindo as equipes dos IMLs (Policia Técnica), eram considerados como corpos não reclamados.

Constatou-se que diante de tais corpos identificados e aparentemente não reclamados, os funcionários dos IMLs não faziam nenhuma busca sobre eventuais registros de desaparecimento de tais pessoas, nem ao menos no sistema integrado da própria Polícia. Ou seja, ainda que a família tivesse realizado registro de desaparecimento em alguma delegacia do Estado do Rio de Janeiro, a equipe do IML não fazia uma mínima verificação no sistema da Polícia (ressalte-se que o IML também é um órgão da mesma Polícia) sobre a existência de um registo de desaparecimento, nem ao menos na DDPA (Delegacia de Descoberta de Paradeiros).

Em suma, ainda que a família tivesse realizado o registro de desaparecimento numa Delegacia de Polícia, se a pessoa desaparecida viesse a óbito, seu corpo fosse devidamente identificado no IML, e o familiar não comparecesse no posto do IML no prazo de 15 dias, tal corpo seria inumado como indigente. Mas a situação se mostra ainda mais grave. Mesmo nos casos em que a pessoa já tivesse ido ao próprio IML em algum período anterior em busca do corpo de seu familiar, nenhum tipo de registro era feito no IML, nem em nome da pessoa que procurava nem em nome da pessoa procurada.

Sendo assim, não bastava que o familiar fosse à Delegacia registrar o desaparecimento, ele deveria também ir ao IML de 15 em 15 dias para garantir que o corpo não chegasse ao local e fosse enterrado como indigente. Maior violação aos direitos fundamentais de tais familiares não há.  Afinal, trata-se de 18 postos de IML em todo o Estado do Rio de Janeiro. Logo, para garantir que seu familiar não fosse enterrado como indigente apesar de identificado, o indivíduo teria que percorrer todas as unidades de IML, nesse mesmo período de 15 dias, o que é absurdo e impossível.

Portanto, as pessoas desapareciam, apareciam para o Estado, e o Estado desaparecia com elas novamente, causando o que passou a ser denominado como redesaparecimento, neologismo criado pela Dra. Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, Promotora de Justiça de São Paulo, que se deparou com o mesmo problema naquele Estado, onde também tramitam inquéritos civis e ações civis públicas com a mesma temática.[2]

Uma grave violação aos direitos fundamentais dos familiares, que foi possível ser dimensionada a partir dos números apontados pelo PLID. Na busca por tutelar o direito dessas pessoas, o programa verificou listas de nomes das pessoas enterradas como indigentes junto aos cemitérios do Rio de Janeiro. Com isso, somente no ano de 2018, realizou a comunicação de óbito a 150 famílias, que buscavam seus parentes desaparecidos que, em algum momento apareceram para o Estado identificados e foram enterrados como indigentes sem que a família tivesse qualquer notícia, por terem sido considerados “não reclamados” de forma absolutamente absurda.

2 – Dos direitos fundamentais violados em razão da omissão do Estado

Quando uma pessoa vem a óbito e é identificada dentro de um órgão do Estado, é dever desse mesmo Estado comunicar o óbito aos familiares. Dessa forma, nenhuma pessoa poderia se manter sob o status de desaparecida se em algum momento encontrou-se custodiada pelo Estado, em especial nas hipóteses tratadas em tela, na forma de um corpo identificado no IML.

A ausência de um protocolo adequado nas Delegacias de Polícia e nas unidades de IML, que significasse uma busca mínima nos sistemas da própria Polícia, bem como a inexistência de qualquer outra forma de busca ativa de dados de familiares para comunicação de óbito, faz com que milhares de pessoas se mantenham como desparecidos para os seus familiares, que continuam a procurá-los das mais diferentes formas possíveis, como por exemplo, espalhando cartazes e buscando por hospitais e IMLs, bem como buscando testemunhas e relatos que possam ajudá-los. Trata-se de uma agonia incessante.

Seja por ato de crença, cultura ou forma de simplesmente compreender que aquela coexistência física chegou ao fim, a despedida daqueles que seguem outro destino e o sepultamento dos cadáveres, fazem parte do ritual de desenlace familiar. Muitos são os relatos de famílias que passam anos na esperança de reencontrar pessoas desaparecidas. Seguem verdadeiras peregrinações, mesmo quando têm por certa a morte, simplesmente na busca de uma resposta definitiva que lhes permita desvincular-se daquela esperança.[3]

O Estado, ao realizar de forma equivocada, o sepultamento de corpos identificados e supostamente “não reclamados”, em razão de sua omissão na realização de qualquer busca de registros de desaparecimentos ou de dados de familiares em bancos oficiais, não apenas ofende os direitos fundamentais da pessoa humana de forma brutal, como também age de modo ilegal e inconstitucional.

Deve ser destacado, ainda, que além da ofensa aos direitos da dignidade da pessoa humana dos familiares pelo sofrimento gerado na procura de desaparecidos que em algum momento foram encontrados e identificados pelo Estado, o cadáver é um bem particular da família. O respeito ao cadáver é um reflexo do direito da personalidade, e a inumação destes corpos como indigentes, apesar de oficialmente procurados pelas famílias e identificados pelo Estado, deixa de ser mera omissão para caracterizar ação ilegal.

A verdade é que o conceito de “não reclamado” não se confunde com o conceito de indigente, e os corpos identificados e presumidos de forma ilegal como se fossem “não reclamados’, bem como o tratamento desses conceitos como se fossem hipóteses idênticas tem gerado a violação dos direitos fundamentais de centenas de famílias pelo próprio Estado.

Para retratar essas centenas de histórias de famílias em busca de parentes desaparecidos, podemos citar o nacional J. F. S., que foi inumado como indigente em razão da ausência de um familiar para reclamar o seu corpo no IML. A partir da lista de nomes do ofício encaminhado pelo IML Central ao Cemitério do Caju, datado de abril de 2015, o PLID localizou o irmão da vítima e fez a comunicação do óbito ao mesmo. Este confirmou não possuir notícias do irmão há mais de um ano e que sua irmã havia registrado desaparecimento dele na Delegacia de Japeri sem que tivesse posteriormente qualquer notícia ou informação de óbito ou do sepultamento por parte de nenhum órgão público[4].

O mesmo destino foi dado a E. L. C., que também foi inumado como indigente em razão de ninguém ter comparecido para reclamar o seu corpo no IML Central, que enviou ofício ao Cemitério de Santa Cruz, onde constava o nome do nacional em tela como corpo identificado e não reclamado. A equipe do PLID localizou a irmã da vítima que informou que já procurava o irmão há aproximadamente 50 dias e que já havia feito registro de desaparecimento na Delegacia de Duque de Caxias. No entanto, ela não recebeu nenhuma informação do óbito ou do sepultamento.[5]

Diante do cenário apresentado e na certeza não apenas da violação dos direitos fundamentais de uma coletividade, mas da legitimidade do Ministério Público em tutelar tais direitos, instaurou-se o inquérito civil n. 2017.0084559 no âmbito da 8ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Cidadania da Capital, tendo por objeto a omissão do Estado nas hipóteses de corpos identificados e considerados “não reclamados”, que são inumados como indigentes sem qualquer busca ou comunicação dos familiares.

3 – Da legitimidade do Ministério Público para tutelar direitos fundamentais violados em razão da omissão do Estado ou dos procedimentos adotados com relação a corpos identificados e “não reclamados” inumados como indigentes.

O ponto de partida para a solução do problema através da atuação do Ministério Público nos autos do referido inquérito civil foi reconhecer como premissa o fato de que a declaração de desaparecimento (registro) frente a qualquer órgão da polícia judiciária deveria ser considerada como manifestação de vontade dos familiares no sentido de estarem “reclamando” eventual localização da pessoa, esteja ela viva ou morta.[6] Desta feita, o Ministério Público  passou a exigir que o Estado do Rio de Janeiro  adotasse procedimentos no âmbito da Polícia Civil, incluindo as unidades de IML, para cruzamento de dados de pessoas registradas como desaparecidas com dados dos corpos identificados nos IMLs.

Ao longo das investigações foram obtidos muitos avanços nos procedimentos adotados nos órgãos de Polícia, bem como na articulação com os setores de Assistência Social do Estado e dos Municípios, que demonstram a importância da resolutividade na atuação do Ministério Público na efetividade e garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, no caso específico em tela, verificado no âmbito da problemática de pessoas desaparecidas.

Numa primeira reunião realizada na sede da 8ª PJTC de Cidadania da Capital em fevereiro de 2018, na presença das Dras. Eliane de Lima Pereira e Roberta Rosa Ribeiro, respectivamente Assessora e Assistente da Assessoria de Direitos Humanos e Minorias do MPRJ, do André Luiz de Souza Cruz, do PLID, e do pesquisador Ramon Chaves, do CENPE, foram apresentados os problemas encontrados e as sugestões para melhorias nos procedimentos adotados.  Uma segunda reunião foi realizada em 05 de abril de 2018, que também contou com a presença de Daniel dos Santos leitão, auxiliar de necropsia, Alexandre Trece Mota, papiloscopista do IFP e Andrea Menezes, que era Diretora do Departamento Geral de Polícia Técnico Científica (DGPTC) à época.

Por ocasião da referida reunião, nos termos da ata de fls. 76/77 do inquérito civil em tela, a então Diretora da DGPTC informou que:

(…) muitos problemas que atrapalham o trabalho no IML e da própria polícia em si são oriundos de questões que deveriam ser resolvidas em outras áreas, como os SVOs nos hospitais, que deveriam buscar a identidade dos doentes enquanto ainda vivos e após o óbito[7]; que atualmente não há uma rotina no IML que busque registros policiais de desaparecidos, nem busca de famílias de corpos identificados que não tenha havido registro de desaparecimento nas delegacias; que acredita que não seja função da polícia buscar famílias de corpos identificados no IML que não sejam reclamados; que acredita que tais funções deveriam ser exercidas por alguém da Assistência Social; que atualmente os peritos do IML não possuem acesso aos registros de desaparecidos das delegacias porque são sistemas diferentes, mas que acredita que possa ser providenciado acesso a esse sistema, de modo que o IML ao menos possa cruzar as informações de corpos identificados com registros de desaparecimentos das delegacias e repassar os dados às delegacias (…).

Diante da constatação de ausência de um procedimento mínimo nas unidades de IML de busca nos bancos de dados de desaparecidos nas delegacias, com o fim de cruzar com as informações dos corpos identificados que estavam sendo considerados como “não reclamados”, aquela Diretora da DGPTC se comprometeu a, no prazo de 30 dias, viabilizar o acesso de alguns servidores em atividade no IML em todos os postos do Estado ao sistema das delegacias para verificar se havia registro de desaparecimento e repassar as informações às delegacias ou, pelo menos, apresentar os avanços obtidos nessa questão.

Desde logo ficou agendada nova reunião para o dia 25 de abril de 2018, com todos os presentes, bem como com algum representante da Secretaria Estadual de Assistência Social, tendo em vista os pontos levantados pela Diretora da DPGTC, sendo certo que compareceram para a reunião, além das pessoas apontadas acima, Nelma de Azevedo, Subsecretária de Assistência Social do Estado e Marcela Gavinho, Assessora Técnica da Subsecretaria de Assistência Social.

Importante destacar o avanço já obtido naquela data, em que Andrea Menezes informou que o servidor Daniel dos Santos Leitão tinha assumido a responsabilidade de fazer a busca nas bases de dados da Polícia Civil de todos os mortos identificados e não reclamados no IML Central, de modo que caso localizasse o registro de desaparecimento no sistema das delegacias, ele faria a comunicação à delegacia de descoberta de paradeiros, para posterior comunicação às famílias e solução dos casos de desaparecimentos.[8]

Após questionamentos da Promotora de Justiça, foi esclarecido que quando um familiar ia à procura de um desaparecido no IML havia um “registro informal” de que havia alguém procurando determinada pessoa, mas que tal registro não seria inserido num sistema, sendo certo que se o corpo desse entrada no IML semanas depois, não necessariamente seria feito contato com familiar que foi ao IML à procura do desaparecido. Sendo assim, a Diretora do DPGTC se comprometeu a promover melhorias nessa rotina nos casos em que a família não tivesse realizado o registro de desaparecimento na delegacia, mas tivesse comparecido a alguma unidade do IML em busca do cidadão.

Além disso, tendo sido questionado o fato de que o procedimento de busca de registros de desaparecidos no sistema das delegacias para fim de cruzamento de dados com os corpos identificados e não reclamados só teria sido implementado no IML Central, e considerando a existência de 18 postos de IML no Estado do Rio de Janeiro, a Diretora do DPTC se comprometeu a implementar o procedimento de busca nas unidades da Baixada Fluminense, de Niterói e também do interior do Estado, conforme se verifica na ata da reunião apontada.

De outro lado, após explanados os problemas referentes à completa ausência de busca ativa das famílias de corpos identificados e não reclamados, a Subsecretária de Assistência Social se comprometeu a elaborar um fluxo de informações dos IMLs para aquela Secretaria e uma possível distribuição de informações aos CREAS para busca das famílias e comunicações dos óbitos nas hipóteses em que as equipes do IML não encontrassem registros de desaparecimentos nas delegacias.

Importante neste ponto fazer uma ressalva de que o Ministério Público atuante no caso em nenhum momento pretendeu interferir no procedimento adotado para providenciar a inumação dos corpos identificados e considerados não reclamados com o fim de retardar o sepultamento de tais pessoas e ocasionalmente gerar a lotação do IML com tais corpos, de modo que foi cobrada a atuação do Estado dentro do próprio período médio de 15 dias que os IMLS demoravam  para encaminhar tais corpos para inumação como indigentes, no sentido de que fosse realizada uma busca nos próprios sistemas existentes com o fim de garantir que tais corpos realmente não tivessem sido reclamados pelos familiares em nenhum órgão estatal.

E de outra ponta, o Ministério Público também buscou que mesmo nas hipóteses  de insucesso na busca de registros de desaparecimento, e independentemente de tais corpos serem encaminhados ao sepultamento, que fosse criado um fluxo com a equipe de Assistência Social do Estado para que seus agentes continuassem na busca de informações sobre familiares do cidadão falecido com o fim de comunicar o óbito, ainda que o mesmo já tivesse sido sepultado.

Dessa forma, o Ministério Público estaria cobrando do Estado, tanto através das ações da Polícia Civil (Delegacias e IMLs), quanto das ações da Assistência Social, uma melhoria nos procedimentos adotados, de modo que tais famílias não tivessem seus direitos fundamentais violados ao longo de anos de sofrimento à procura de parentes desaparecidos, que, na verdade, já tinham sido encontrados pelo Estado.

Prosseguindo no escopo do inquérito civil, qual seja, de tutelar os direitos fundamentais dessas famílias, foi realizada nova reunião no dia 7 de junho de 2018, onde esteve presente o Diretor do IML Central que reafirmou que estava sendo realizado o cruzamento de dados de corpos identificados e não reclamados com os sistemas de registros de desaparecimento das delegacias de todo o Estado após o prazo de 3 dias da entrada do cadáver. Este, no entanto, informou que ainda não tinha sido implementado tal procedimento nas demais unidades de IML do interior do Estado.[9]

Destaque-se que tal medida se mostra ainda imprescindível, pois a adoção de um procedimento no IML Central de certo diminuirá os casos de desaparecimento antes sem solução, mas ainda não resolve as hipóteses, por exemplo, em que a pessoa, que vivia na Cidade do Rio de Janeiro vem a óbito em outro Município e seu corpo é encaminhado para outra unidade do IML diferente da Unidade Central – Afrânio Peixoto. Isto porque ainda que a família tenha realizado o registro de desaparecimento numa Delegacia, nenhum funcionário das demais unidades de IML espalhadas pelo Estado estaria realizando a busca de registros nos sistemas das delegacias, mantendo-se nessas unidades, a mesma omissão absurda constatada no início das investigações.

De outro lado, a equipe da Subsecretaria de Assistência Social se dispôs a receber as informações dos IMLs, realizar buscas nos sistemas do CADUNICO e repassar os dados aos CREAS locais das regiões dos cadastros das pessoas para busca das famílias e comunicação do óbito, além do comprometimento de abordar o assunto junto às Secretarias Municipais de Assistência Social na próxima reunião da Comissão Intergestora Bipartite. Desta feita, já nas reuniões seguintes, realizadas em julho e agosto de 2018, apresentaram a proposta de fluxo de informações entre as unidades de IML para um email da Subsecretaria de Estado de Assistência Social, que repassaria as informações às Secretarias Municipais de Assistência Social competentes, que repassariam aos CREAS ou CRAS mais próximos das residências dos familiares para comunicação do óbito, nos termos de fl. 109 do inquérito civil em questão.

Na reunião seguinte, realizada em setembro de 2018, nos termos da ata de fl.161, após notificação do Ministério Público, além dos representantes do PLID, da Assessoria de Direitos Humanos e Minorias, e da Subsecretaria de Assistência Social, compareceu o Sr. André Drumond, Diretor da DGTIT (Diretoria Geral das Tecnologias da Informação e Telecomunicações) que esclareceu que a Polícia Civil já possuía um sistema de informações que reúne os dados dos IMLS e delegacias, e que bastaria, por exemplo, que a Chefia da Polícia criasse um setor nos IMLs com esta função de busca de dados de registros de desaparecimento e os funcionários deste setor teriam acesso aos sistemas de todas as delegacias do Estado, se comprometendo a levar a solicitação de tal providência à Chefia da Polícia e apesentar os resultados na próxima reunião, que já ficou agendada para outubro de 2018.

Na reunião seguinte[10], o Diretor da DGTIT reafirmou sua sugestão de criação de um setor com o fim proposto, afirmou que levou as questões debatidas na reunião anterior ao Diretor do IML e que o mesmo tinha se comprometido a contribuir com as implementações necessárias, mas, tendo em vista que nenhum novo resultado concreto havia sido demonstrado, a Promotora de Justiça concedeu um prazo final de 5 dias para que fosse apresentado um protocolo da solicitação de implementação do setor de busca de informações sugerido na Chefia de Polícia, que foi apresentado às fls. 186/187 do inquérito civil em questão.

Finalmente foi publicada a Ordem de Serviço nº 001/DGPTC de 31 de outubro de 2018, disciplinando e uniformizando as rotinas administrativas a serem adotadas pela Polícia Civil com relação aos cadáveres IDENTIFICADOS E NÃO RECLAMADOS, cuja cópia consta à fl. 196 do IC, merecendo destaque os artigos 2º, 5º, 7º, 8º e 9º da referida ordem de serviço, a seguir transcritos:

“Art. 2º- Compete ao IMLAP ou ao PRPTC, a comunicação do óbito ao familiar do cadáver IDENTIFICADO.

  • 1º – Na hipótese de cadáver não reclamado, caberá ao IMLAP, através do Setor de Cadáveres Não Reclamados a realização das diligências necessárias à localização de familiar do cadáver através de buscas em todos os bancos de dados disponíveis ao policial civil.
  • 2º- Verificada a hipótese de cadáver devidamente IDENTIFICADO e não reclamado em SML/PRPTCs, compete ao Serviço de Identificação e Retrato Falado/SICREF do próprio PRPTC a realização das diligências previstas no §1º deste artigo.”

“Art. 5º – Esgotadas as diligências para localização de familiar do cadáver IDENTIFICADO e NÃO RECLAMADO, deverá o responsável elaborar, no sistema SPTWEB, informação circunstanciada acerca das diligências realizadas e resultados obtidos, para ciência do Dirigente do órgão em no máximo 72 (setenta e duas) horas.”

“Art. 7º – Caberá ao Instituto de Identificação Felix Pacheco – IFP determina a rotina de buscas prevista no §1º do artigo 2º da presente normativa e promover o treinamento dos servidores designados pelos Dirigentes do IMLAP e aos PRPTCs.

“Art. 8º – Os dirigentes deverão estabelecer, por ato próprio, os fluxos internos e adotar todas as medidas necessárias para cumprimento da presente Ordem de Serviço, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, a contar do início da vigência da presente normativa.”

“Art. 9º – Esta Ordem de Serviço entrará em vigor na data de sua publicação.”

Da leitura da Ordem de Serviço verifica-se a importância do trabalho do Ministério Público de Tutela Coletiva nos autos do inquérito em tela com o fim de garantir a efetividade dos direitos fundamentais da coletividade a partir de uma atuação resolutiva. Após a constatação da ofensa a estes direitos, a partir da verificação da omissão do Estado nos procedimentos adotados referentes a corpos identificados e não reclamados, da realização de reuniões com as autoridades competentes para demonstração dos problemas e cobrança de melhorias, conquistou-se a mudança dos protocolos adotados nas unidades de polícia técnica.

Com efeito, após a publicação da Ordem de Serviço em questão, foi realizada nova reunião com o fim de verificar se a mesma estava sendo devidamente cumprida, onde estiveram presentes André Luiz de Souza Cruz, do PLID, André Drumond, Diretor da DGTIT, Nadia Sad Abrahão, atual Diretora do Departamento Geral de Polícia Cientifica, peritos legistas do IML, Representantes da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos e Maria Jovita Vieira, Coordenadora dos Desaparecidos da Subsecretaria de Promoção, Defesa e Garantia dos Direitos Humanos, nos termos da ata de fls. 215/216.

Em razão de a Sra Nádia ter assumido o cargo de Direção DGPTC naquele mês de janeiro de 2019, esclareceu que não podia confirmar se a rotina estabelecida pela Ordem de Serviço já estaria sendo cumprida em todos os postos do IML do Estado, mas reafirmou que os procedimentos previstos na normativa já estavam sendo adotados no IML Central, com a inclusão de informação no sistema de que cada busca teria sido realizada, com os dados do familiar e o resultado do contato, medida esta fundamental para comprovar que o procedimento estava sendo cumprido na prática. Ressaltou, ainda, que já estavam agendadas vistorias em todos os postos do interior, que entre outros fins, serviriam para verificar o cumprimento da Ordem de Serviço, destacando, por fim, que o objetivo daquela Diretora seria realizar treinamentos de pessoal para melhoria no cumprimento da normativa em tela.

De outro lado, verificou-se também significativo avanço com relação à atuação das equipes de Assistência Social, que destacaram que o fluxo da localização de famílias de corpos identificados e não reclamados junto aos cadastros do CADUNICO, bem como o fluxo direto dos IMLs Regionais com as Secretarias Municipais de Assistência Social foram aprovados na Deliberação CIB, cuja cópia consta às fls.216/217, se comprometendo a prestar informações com relação à publicação da referida deliberação, bem como fornecer um e-mail para organização do fluxo entre os IMLs e aquela Secretaria.

Sendo assim, na reunião realizada em abril de 2019 foi informado pela Sra. Nadia Sad Abrahão que a partir de Ordem de Serviço DGPTC nº 001/2018 foram adotadas providências no sentido de aprimorar o serviço dentro do IML e as responsabilidades em relação aos óbitos e desaparecidos juntamente com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, via Corregedoria de Justiça e outros órgãos que, em conjunto, elaboraram uma minuta de Resolução para disciplinar diversos aspectos das atividades do IML, englobando o objeto do inquérito civil em tela, qual seja, procedimentos adotados com relação aos corpos identificados e não reclamados, nos termos da ata de reunião de fls. 229/230.

Foi informado pela Diretora que a minuta encontrava-se na Assessoria Jurídica da Polícia Civil e que após a aprovação da Resolução, cuja cópia foi juntada às fls. 231/250 do IC, será feita a capacitação dos peritos, tendo sido sugerido pela Dra. Eliane Lima Pereira (Assessora de Direitos Humanos e Minorias do MPRJ) que fosse incluída cláusula de compartilhamento de dados do IML com o Ministério Público e comunicação ao PLID, o que será analisado pela Diretora da DGPTC.

Além disso, pela Coordenação do CADUNICO foi informada a criação do email gtlocalização.rj@gmail.com para receber informações dos IMLs e realizar as buscas nos Municípios, conforme pactuado na Deliberação CIB (Comissão Intergestores Bipartite), aguardando apenas a finalização em razão da mudança de Secretaria a que a CIB estava vinculada.

Por fim, merecem destaque os artigos 20 e 21 da referida Resolução que está sob análise dos órgãos competentes da Polícia, uma vez que diretamente relacionados com os protocolos adotados nos casos de corpos identificados e não reclamados, que consistem no objeto do inquérito civil analisado no presente caso, senão vejamos:

“Art. 20 – Certificada a real identidade de um cadáver e decorridas mais de 72 (setenta e duas horas) da entrada do corpo na Unidade Médico Legal e sua respectiva necropsia, o Setor de Controle de Cadáveres do IMLAP, procederá à busca ativa pelos familiares através de pesquisas biográficas e análise de vínculos, nos bancos de dados aos quais tem acesso em razão de sua atividade de polícia judiciária, a saber: Aplicativos WEB da rede INTRAPOL – ROWEB, SPWEB, SICWEB; Sistema Estadual de Identificação- SEI, Portal de Segurança/RJ, INFOSEG.”

“§1º – Nos PRPTCs, compete ao Papiloscopista do Serviço de Identificação Criminal e Retrato Falado – SICREF realizar as pesquisas citadas no caput deste artigo.”

“Art. 21 – Quando se tratar de cadáver COM IDENTIDADE CIVIL CERTIFICADA mas ainda NÃO RECLAMADO in locu, compete ao IMLAP ou aos PRPTCs realizar o contato, por todos os meios de comunicação disponíveis, com os familiares localizados a partir das pesquisas determinadas no artigo 2 para dar-lhes ciência da necessidade de comparecimento à Unidade Médico Legal em até 48 (quarenta e oito) horas, a fim de receberem a declaração de óbito, providenciarem o registro do óbito em cartório e a devida inumação.”

“§1º – Decorrido o prazo do caput deste artigo ou caso o contato com os familiares não seja efetivado, o dirigente do Órgão Médico Legal deverá providenciar o registro de óbito em Cartório no máximo até o 8º (oitavo) dia, contados da entrada do cadáver na Unidade Médico Legal, e adotar providências para a inumação do corpo, em até 30 (trinta) dias do registro de óbito efetivado, observados os dispositivos da Lei Federal 6.015/1973, salvo na hipótese do cadáver ser destinado à doação, nos termos da Lei Federal 8.501/1992.”

CONCLUSÃO OBJETIVA

Diante do exposto, em que pese a análise com relação a possíveis melhorias no texto na minuta de Resolução que se pretende adotar, bem como na necessidade de adoção dos procedimentos de busca de registros de desaparecimentos nos sistemas da Polícia nas unidades de IML do interior do Estado, é possível concluir que a atuação do Ministério Público na defesa dos direitos fundamentais de forma efetiva resultou na publicação da Ordem de Serviço 001/2018 DGPTC, que se encontra em vigor e determinou a implementação de procedimentos de busca nos casos de corpos identificados e não reclamados, que se encontram em pleno funcionamento pelo menos no IML Central do Município do Rio de Janeiro.

Além disso, verificou-se que a partir da atuação do Ministério Público no bojo do inquérito civil analisado, foram criados fluxos entre os IMLs e os órgãos de Assistência Social do Estado e dos Municípios, devidamente aprovados pelas Deliberações competentes, no intuito de diminuir o sofrimento das famílias que ainda buscam desaparecidos.

Por fim, espera-se que os avanços ainda necessários nos procedimentos para busca de familiares de pessoas desparecidas, que podem ter aparecido para o Estado na forma de corpos identificados e não reclamados, sejam adotados em breve pelos órgãos competentes, a partir da atuação contínua do Ministério Público, seja através da atuação extrajudicial, ou da competente Ação Civil Pública, caso a mesma se faça necessária. Estamos, afinal, garantindo os direitos fundamentais das famílias de pessoas desaparecidas de forma efetiva, confiando que a partir das mudanças de tais práticas, no próximo estudo a ser elaborado com relação às atividades do PLID, seja possível verificar a diminuição de comunicações de óbito de corpos identificados e não reclamados inumados como indigentes.            

PROPOSTA DE ENUNCIADO: Cabe ao Ministério Publico a atuação extrajudicial e judicial na defesa dos direitos fundamentais de familiares de pessoas desaparecidas, de modo a garantir que o Estado adote procedimentos adequados e necessários para o cruzamento de dados de registros de desaparecimento em órgãos públicos e para a busca ativa de familiares, e com isso abstenha-se da prática de inumação de “corpos identificados e não reclamados” como indigentes.

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NOTAS

[1] Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Email: fnicolau@mprj.mp.br

[2] Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, Revista Liberdades, edição nº 22 maio/agosto 2016, Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, O Ministério Público em busca de pessoas desaparecidas: desaparecimentos forçados por omissão do Estado.

[3] André Luiz de Souza Cruz, Desaparecimento: entre o direito de liberdade e a dignidade da pessoa humana, Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, MPRJ, n 54, out/dez 2014.

[4] Sindicâncias de pessoas localizadas pelo PLID, anexo II do IC 2017.0084559, fl. 10.

[5] Sindicâncias de pessoas localizadas pelo PLID, anexo II, do IC 2017.0084559, fl. 30.

[6] Resposta da equipe do PLID ao ofício n. 235/2019, Apenso I do MPRJ 2017.00845559.

[7] Com relação a este aspecto, foi ajuizada ACP nº 0093477-79.2017.8.19.0001, com o fim de obrigar o Estado do Rio de Janeiro a implementar Serviço de Verificação de Óbito (SVO), onde já há sentença judicial neste sentido.

[8] Ata de reunião as fls. 88/89 do IC 2017.00845559

[9] Ata de reunião às fls. 100/101 do IC

[10] Ata de reunião às fls. 183/184 do IC.