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A Retroatividade da nova representação do ofendido do crime de estelionato

Inserido em 22 de junho de 2022
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Sauvei Lai[1]

Sumário: I. Da introdução; II. Da natureza híbrida da representação do ofendido; III. Da distinção entre condição de procedibilidade e de prosseguibilidade; IV. Dos precedentes similares no Direito brasileiro; V. Da retroatividade da nova representação do ofendido do crime de estelionato; VI. Da conclusão.

  1. DA INTRODUÇÃO

            A Lei nº 13.964/19 (Pacote Anticrime), entre tantas relevantes alterações na legislação penal e processual penal, modificou a espécie da ação penal do crime de estelionato no novo § 5° do art. 171 do Código Penal[2] (CP), que, doravante, se processa, em regra, mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido.

Entretanto, a legislação não estabeleceu disposições transitórias a respeito do direito intertemporal, em especial do alcance da retroatividade da lei penal benéfica, princípio contemplado no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988[3] (CF/88), ensejando controvérsias inerentes à sucessão das leis penais no tempo.

O principal imbróglio a ser debatido nesse artigo jurídico consiste em definir os limites temporais da retroatividade da norma do art. 171, § 5º, do CP, se sua extensão alcança apenas as investigações em curso para demandar a representação do ofendido na eventual hipótese de oferecimento de denúncia ou se há a necessidade também de colhê-la nos processos judiciais em andamento, isto é, com a ação penal previamente intentada.

  1. DA NATUREZA HÍBRIDA DA REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO

As Cortes Superiores sempre reconheceram a natureza híbrida (ou mista) da lei penal que institui a representação do ofendido, uma vez que a ausência de sua implementação no prazo de 6 meses do art. 38 do Código de Processo Penal[4] (CPP) importa a extinção da punibilidade pela decadência, nos moldes do art. 107, inciso IV, do CP[5].

Portanto, se um crime de ação penal pública incondicionada passa a ser processado através de representação do ofendido em virtude de uma alteração legislativa superveniente, parece natural assentar que a novatio legis in mellius retro-operará, atendendo-se ao primado constitucional da retroatividade benéfica da lei penal do art. 5º, inciso XL.

Todavia, é o alcance desta retro-operação que vem dividindo a doutrina e a jurisprudência nacional, inclusive as duas Turmas[6] do Supremo Tribunal Federal.

O ponto central da discussão gira em torno da definição da natureza jurídica da representação do ofendido do crime de estelionato após o advento do Pacote Anticrime.

Se for compreendê-la como mera condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada, demandar-se-á apenas na fase pré-processual da investigação, ou seja, ainda sem o respectivo oferecimento da denúncia, que tornaria, a partir daí, um ato jurídico perfeito (art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88[7]), precluindo, ipso facto, a  indispensabilidade daquela.

Por outro lado, se for enxergada, outrossim, como condição de prosseguibilidade, ela se faria necessária para a continuidade dos processos judiciais previamente instaurados, sob a vigência da legislação anterior.

 

  • DA DISTINÇÃO ENTRE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE E DE PROSSEGUIBILIDADE

Sob esta perspectiva, é conveniente revisitar os conceitos de condição de procedibilidade e de prosseguibilidade da ação penal.

A condição especial de procedibilidade materializa um pressuposto que é observado para o exercício regular da ação penal condicionada, a exemplo da representação do ofendido e da requisição do Ministro da Justiça (art. 24 do CPP[8]), sem as quais a denúncia é rejeitada, nos termos do art. 395, inciso II do CPP[9].

De outra sorte, a condição de prosseguibilidade (ou condição superveniente da ação) é aquela que subordina a continuidade de processo já iniciado, como a necessidade de recuperação do acusado a quem sobreveio doença mental (art. 152, caput, do CPP[10]), na qual se suspende o processo, enquanto o prazo prescricional permanece fluindo[11].

 

  1. DOS PRECEDENTES SIMILARES NO DIREITO BRASILEIRO

Controvérsia idêntica ocorreu por ocasião da vigência da Lei nº 9.099/95, que em seu art. 88 estabeleceu que os crimes de lesão corporal leve e culposa passariam a ser perseguidos mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido, deixando de ser incondicionada (art. 100, caput e § 1º, do CP[12]).

Como a ação penal era antes de natureza pública incondicionada, essa alteração legislativa viabilizou a incidência de mais uma causa de extinção da punibilidade em virtude de hipotética decadência (art. 107, inciso IV do CP), retro-operando para beneficiar o réu. Mas, igualmente, inaugurou uma controvérsia acerca dos limites da retroatividade do art. 88 da Lei dos Juizados Especiais.

À época, alguns doutrinadores[13] sustentaram que esse instituto ostentava a natureza jurídica de mera condição especial de procedibilidade, de modo que a representação do ofendido só seria necessária nos casos em que a denúncia não tivesse sido oferecida, quando da entrada em vigor da Lei nº 9.099/95. Ao revés, se a ação penal já fora intentada, prescindir-se-ia da intimação da vítima para se manifestar, sob o argumento de que a peça acusatória ofertada constituiria ato jurídico perfeito, não existindo, consequentemente, obrigatoriedade de convocar o ofendido para representar no curso do processo judicial, sobretudo em atenção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública (art. 42 c/c art. 576, ambos do CPP[14][15]).

Do lado oposto, defendia-se[16] a dupla natureza do instituto, classificando-o também como condição de prosseguibilidade do processo, especialmente ante a redação do art. 91 da Lei nº 9.099/95[17], que estabeleceu que o ofendido seria “intimado para oferecê-la em 30 dias, sob pena de decadência”.

Assim, a representação do ofendido funcionaria, em regra, como condição de procedibilidade e, excepcionalmente como condição de prosseguibilidade da ação penal pública, caso o processo estivesse em trâmite[18].

O Supremo Tribunal Federal[19] navegou nessa direção no INQ 1.055 QO, in textus:

INQUERITO – QUESTÃO DE ORDEM – CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES IMPUTADO A DEPUTADO FEDERAL – EXIGÊNCIA SUPERVENIENTE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO ESTABELECIDA PELA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91), QUE INSTITUIU OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS – AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA – NORMA PENAL BENEFICA – APLICABILIDADE IMEDIATA DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/95 AOS PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINARIOS INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES – NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO – AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. – A Lei n. 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, subordinou a perseguibilidade estatal dos delitos de lesões corporais leves (e dos crimes de lesões culposas, também) ao oferecimento de representação pelo ofendido ou por seu representante legal (art. 88), condicionando, desse modo, a iniciativa oficial do Ministério Público a delação postulatória da vítima, mesmo naqueles procedimentos penais instaurados em momento anterior ao da vigência do diploma legislativo em questão (art. 91). – A lei nova, que transforma a ação pública incondicionada em ação penal condicionada a representação do ofendido, gera situação de inquestionável beneficio em favor do réu, pois impede, quando ausente a delação postulatória da vítima, tanto a instauração da persecutio criminis in judicio quanto o prosseguimento da ação penal anteriormente ajuizada (…). (Inq. 1055 QO, Relator: CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 24/04/1996, DJ 24-05-1996) (grifado)

 

De igual modo, por identidade de razões, a suspensão condicional do processo do art. 89 da Lei nº 9.099/95[20] aplicar-se-ia aos réus em processos judiciais, mesmo com a denúncia oferecida, quando da vigência da norma, desde que atendidos os requisitos legais, porquanto o cumprimento das condições acordadas (§ 1º) constitui também causa extintiva da punibilidade (§ 5º), qualificando-a como instituto de norma híbrida (ou mista).

Assim, não obstante a proposta ser formulada na denúncia – precluindo, em tese, com o seu oferecimento –, a superveniência legislativa favoreceu de tal sorte o réu que todos os processos em trâmite foram atraídos para o campo gravitacional da retroatividade da lex mitior, transformando o instituto em uma verdadeira condição de prosseguibilidade da ação penal.

Esta foi a posição esposada pelo Supremo Tribunal Federal, que concretizou uma interpretação teleológica e definiu que a proposta de sursis processual seria ofertada pelo Ministério Público em todos os processos em curso, ainda que instaurados antes da vigência da Lei nº 9.099/95, contanto que não houvesse sentença. Confira-se:

HABEAS CORPUS – SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO PENAL (“SURSIS” PROCESSUAL) – LEI Nº 9.099/95 (ART. 89) – CONDENAÇÃO PENAL JÁ DECRETADA – IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEX MITIOR – LIMITES DA RETROATIVIDADE – PEDIDO INDEFERIDO. – A suspensão condicional do processo – que constitui medida despenalizadora – acha-se consubstanciada em norma de caráter híbrido. A regra inscrita no art. 89 da Lei nº 9.099/95 qualifica-se, em seus aspectos essenciais, como preceito de caráter processual, revestindo-se, no entanto, quanto às suas conseqüências jurídicas no plano material, da natureza de uma típica norma de direito penal, subsumível à noção da lex mitior. – A possibilidade de válida aplicação da norma inscrita no art. 89 da Lei nº 9.099/95 – que dispõe sobre a suspensão condicional do processo penal (“sursis” processual) – supõe, mesmo tratando-se de fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da vigência desse diploma legislativo, a inexistência de condenação penal, ainda que recorrível. Condenado o réu, ainda que em momento anterior ao da vigência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, torna-se inviável a incidência do art. 89 da Lei nº 9.099/95, eis que, com o ato de condenação penal, ficou comprometido o fim precípuo para o qual o instituto do “sursis” processual foi concebido, vale dizer, o de evitar a imposição da pena privativa de liberdade. Precedente. (HC 74463, Relator(a): CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 10/12/1996, DJ 07-03-1997) (grifado)

 

Eugênio Pacelli comungou do mesmo pensamento e esclareceu a impossibilidade de se propor a suspensão condicional do processo ante a superveniência de sentença condenatória, eis que o instituto é de natureza despenalizadora que busca evitar a imposição de pena privativa de liberdade, que se verifica com a prolação daquela, frustrando aquela prevenção, in verbis:

Não há qualquer problema no oferecimento da proposta de suspensão quando já estiver em curso a ação penal, desde que não esteja já sentenciada. Havendo já decisão definitiva, ainda que não passada em julgado, não poderá, obviamente, ser realizada a suspensão, por impossibilidade lógica, tanto em relação ao processo, já julgado, como em relação à própria existência da sentença. Ora, se o tribunal baixasse os autos para o fim de ser realizada a suspensão do processo, a sentença então proferida seria olimpicamente ignorada, como se fosse inexistente.[21] (grifado)

 

  1. DA RETROATIVIDADE DA NOVA REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO DO CRIME DE ESTELIONATO

 

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça e a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal[22] julgaram, recentemente, que o novel benefício do art. 171, § 5º, do CP não atinge os processos em curso, vale dizer, nos quais houvera o oferecimento da denúncia diante da formação do ato jurídico perfeito, que foi praticado e se consumou de acordo com os requisitos legais da época e, ipso facto, imune de qualquer inovação legislativa (art. 5o, inciso XXXVI, CF/88). Nesse sentido, a exigência de representação qualificar-se-ia apenas como condição especial de procedibilidade, aplicando-se tão somente à fase inquisitorial, em outras palavras, antes do oferecimento de denúncia.

Outro argumento ventilado por Rogério Sanches Cunha consistiu no silêncio eloquente da Lei nº 13.964/19.

De fato, diversamente dos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95, que expressamente impuseram a intimação do ofendido para representar em 30 dias, inclusive nos processos em trâmite, tratando-a, então, como condição de prosseguibilidade, o Pacote Anticrime não adotou essa providência, motivo pelo qual ela deve se limitar a uma simples condição de procedibilidade, in textus:

Se a inicial (denúncia) já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança. Não nos parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. A lei nova não exigiu essa manifestação (como fez no art. 91 da Lei n. 9.099/95).[23] (grifado)

 

Contudo, em sentido antagônico, posicionou-se a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ipsis litteris:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. MATÉRIA CRIMINAL. ESTELIONATO. DOSIMETRIA DA PENA. MAUS ANTECEDENTES. FATOS ANTERIORES. TRÂNSITO EM JULGADO POSTERIOR. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. LEI 13.964/2019. INCLUSÃO DO § 5º DO ART. 171: AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO. NOVA HIPÓTESE DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE. NORMA DE CONTEÚDO MISTO. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, DA CF. REPRESENTAÇÃO. DISPENSA DE MAIOR FORMALIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. (…) 2. A expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo. 3. O § 5º do art. 171 do Código Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, ao alterar a natureza da ação penal do crime de estelionato de pública incondicionada para pública condicionada à representação como regra, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque, ao mesmo tempo em que cria condição de procedibilidade para ação penal, modifica o exercício do direito de punir do Estado ao introduzir hipótese de extinção de punibilidade, a saber, a decadência (art. 107, inciso IV, do CP). 4. Essa inovação legislativa, ao obstar a aplicação da sanção penal, é norma penal de caráter mais favorável ao réu e, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. Precedentes do STF. 5. A incidência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário. 6. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que a representação da vítima, em crimes de ação penal pública condicionada, dispensa maiores formalidades. Precedentes. 7. (…) 8. Agravo regimental desprovido. (ARE 1289175 AgR, Relator: EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 21/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe 08-02-2022) (grifado)

 

Nota-se que este entendimento guarda coerência com a jurisprudência tradicionalmente edificada pelo Supremo Tribunal Federal no tocante à retroatividade dos arts. 88, 89 e 91 da Lei nº 9.099/95, consoante exposição acima.

Cuida-se de norma híbrida benéfica e retroativa, de modo que a sucessão de leis penais no tempo faz operar a representação do ofendido tanto como condição de procedibilidade, quanto condição de prosseguibilidade, incidindo sobre os crimes de estelionato na fase de investigação pré-processual e nos processos judiciais em andamento.

Aury Lopes Junior e Renato Brasileiro caminham na mesma trilha, in verbis:

Essa nova lei é mais benigna para o réu e deve retroagir, cabendo aos juízes e tribunais (pois ela se aplica em grau recursal) suspender o feito e intimar a vítima para que se manifeste. E qual o prazo? A nova lei não menciona, mas pensamos ser plenamente aplicável o prazo de 30 dias previsto na Lei n. 9.099 (art. 89). Se a vítima representar no prazo, o feito prossegue. Se não representar (deixar passar o prazo) ou se manifestar expressamente no sentido de renunciar ao direito de representar, o feito será extinto, diante da extinção da punibilidade do art. 107IV do CP.[24]

 

Quanto ao prazo para o oferecimento dessa representação como condição de prosseguibilidade, certamente haverá quem entenda que o prazo deverá ser aquele constante do art. 91 da Lei n. 9.099/95 (30 dias).[25]

 

Por sinal, se existissem dois inquéritos apurando crime de estelionato em datas idênticas, porém apenas um tivesse ensejado a denúncia, o tratamento jurídico seria desigual, de acordo com a doutrina que defende a irretroatividade nos casos de deflagração consumada da ação penal. Para a infração penal com denúncia, inexistiria a novatio legis in mellius, contudo, para o outro delito, ainda em apuração, a nova legislação retroagiria.

Tal solução diferenciada para cenários iguais ofenderia, em tese, o princípio constitucional da isonomia do art. 5o, caput.

De outra sorte, se o constituinte originário erigiu a retroatividade benéfica da lei penal, como garantia fundamental, não parece sensato o intérprete materializar uma leitura restritiva dessa cláusula pétrea, que merece ser potencializada a partir do princípio da dignidade da pessoa (art. 1o, inciso III, da CF/88[26]), bússola norteadora da moderna hermenêutica constitucional.

Quando da análise dos limites da retroatividade da norma do art. 171, § 5º, do CP, o intérprete há de promover uma harmonização entre o art. 5o, inciso XXXVI (ato jurídico perfeito) e o art. 5o, inciso XL (retroatividade benéfica), da CF/88, conferindo rendimento ao princípio da unidade da Constituição[27].

Por conseguinte, conclui-se que a exigência de representação do ofendido deve ser observada nos processos em curso, por ocasião da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, concretizando o mandamento constitucional do art. 5o, inciso XL, mas não sepulta a garantia fundamental da segurança jurídica e do respeito à coisa julgada (art. 5o, inciso XXXVI), aplicando aquela até o advento do trânsito em julgado da sentença condenatória, caracterizador da definitividade e da imutabilidade de qualquer provimento jurisdicional.

Sabe-se que os direitos e as garantias fundamentais não são absolutos, podendo ser relativizados quando entram em colisão uns com outros. Nesse contexto, emerge o princípio da concordância prática[28], segundo o qual, em havendo colisão entre aqueles, incumbe ao intérprete adotar uma exegese que não aniquile qualquer um deles, promovendo uma compreensão sistemática da Constituição.

Assim, apesar de a retroatividade benéfica da lei penal operar até mesmo durante a execução penal (art. 2o, in fine, do CP[29], art. 66, inciso I, da Lei n. 7.210/1984[30] e súmula 611 do Supremo Tribunal Federal[31]), não é prudente e recomendável subordinar o cumprimento de pena do condenado irrecorrivelmente pelo Poder Judiciário à vontade do ofendido, sob pena de descrédito do sistema judicial brasileiro e da sua consequente legitimidade.

 

  1. DA CONCLUSÃO

Em suma, depreende-se que a exigência da representação do ofendido no crime de estelionato há de retro-operar para atingir fatos anteriores à vigência da Lei nº 13.964/19, uma vez que a regra do art. 171, § 5º, do Código Penal é classificada como uma norma híbrida, sujeitando-se à retroatividade benéfica do art. art. 5o, inciso XL, da CF/88 e alcançando tanto as investigações pré-processuais quanto os processos judiciais em trâmite até o trânsito em julgado da sentença condenatória em homenagem ao princípio da segurança jurídica e do respeito à coisa julgada do art. 5o, inciso XXXVI, da CF/88.

Verão de 2022

[1] Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro. Membro-auxiliar da Assessoria Jurídica Criminal no Supremo Tribunal Federal da Procuradoria-Geral da República. Mestrando. Integrante do grupo de trabalho da sub-relatoria da revisão do Código de Processo Penal (CPP) na Câmara dos Deputados em 2019. Representante da Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP) perante a Câmara dos Deputados na discussão do novo CPP em 2021. Coautor do Anteprojeto de Lei nº 4.939/2020 sobre Diretrizes do Direito da Tecnologia da Informação e outros assuntos. Professor. Autor de artigos jurídicos. Ex-Defensor Público do Rio de Janeiro. Aprovado no concurso público para Delegado da Polícia Federal. Examinador do concurso público para Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

[2] Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis

  • 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for:

I – a Administração Pública, direta ou indireta;

II – criança ou adolescente;

III – pessoa com deficiência mental; ou

IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

[3] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[4] Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

[5]    Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:

IV – pela prescrição, decadência ou perempção

[6] Primeira Turma. Rel. Min. __. HC nº 187.341; HC nº 203.398-AgR; HC nº 202.831-AgR e RHC nº 205.070- AgR.

Segunda Turma. Rel. Min. __. HC nº 180.421-AgR.

[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

[8] Art. 24.  Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

[9] Art. 395.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal;

[10] Art. 152. Se se verificar que a doença mental sobreveio à infração o processo continuará suspenso até que o acusado se restabeleça, observado o § 2o do art. 149.

[11] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020, p. 311.

TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 12 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017, p. 254/255.

[12] Art. 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

  • 1º – A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.

[13] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 27 ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2019, p. 315/320.

[14] Art. 42.  O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.

Art. 576.  O Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto.

[15] É de se observar que Paulo Rangel sustenta ser o art. 88 da Lei n. 9.099/95 uma norma puramente processual (e não híbrida), de modo que se submete ao princípio tempus regit actum, aplicando-se apenas aos fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor que não foram objeto de ação penal. Isto porque a denúncia oferecida antes da vigência da aludida normal preencheu todas as condições da ação exigidas à época pela legislação processual (RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 27 Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2019, p. 318).

[16] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020, p. 1588.

[17] Art. 91. Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.

[18] Cunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP – Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 65.

[19] O entendimento foi adotado em outros acórdãos, a exemplo dos seguintes: STF, HC 83141, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 05/08/2003, DJ 26-09-2003; STF, HC 76109, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 10/03/1998, DJ 30-04-1998; STF, RHC 74606, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 08/04/1997, DJ 23-05-1997; e STF, HC 76717, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 18/09/1998, DJ 30-10-1998; STF, HC 75763, Relator(a): MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 14/10/1997, DJ 21-11-1997.

[20] Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

  • 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

I – reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II – proibição de freqüentar determinados lugares;

III – proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

[…]
  • 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.

[21] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24 ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2020, p. 869.

[22] STJ, HC 610.201/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2021, DJe 08/04/2021. No mesmo sentido, decidiu a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal: STF, HC 187341, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe 04/11/2020.

[23] Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/07/1023-exigencia-de-representacao-no-estelionato-alcanca-processos-com-denuncia-ja-oferecida/. Acesso em: 15/05/2022.

[24] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020, p. 366.

[25] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17 ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2020, p. 169.

[26] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana.

[27] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2 dd. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 439/442. “O princípio da unidade da Constituição deriva do elemento sistemático da interpretação constitucional. De acordo com o princípio da unidade, a Constituição deve ser interpretada não como um conjunto assistemático de preceitos, mas como um todo integrado de normas que se completam e se limitam reciprocamente.”

[28] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 439/442. “O princípio da unidade da Constituição não é incompatível com o reconhecimento da existência de tensões entre os valores constitucionais, de colisões entre as suas normas. Mas ele impõe que tais colisões sejam equacionadas com base em critérios também ancorados na própria Constituição. Um desses critérios é a imposição ao intérprete de que busque a harmonização das normas constitucionais em conflito. Em outras palavras, o intérprete deve perseguir a concordância prática entre normas constitucionais que estejam em tensão, buscando preservar, ao máximo possível, os valores e interesses que lhes são subjacentes”

[29] Art. 2º – Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

[30] Art. 66. Compete ao Juiz da execução:

I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;

[31] Súmula 611. Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna