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Breves considerações acerca da execução das sanções premiais em regime diferenciado pós-pacote anticrime

Inserido em 3 de junho de 2022
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I. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 4º, § 7º, INCISO II, DA LEI Nº 12.850/13. II. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA. III. DOS PRESSUPOSTOS PARA A FIXAÇÃO DA “PENA CRIMINAL” E DA “SANÇÃO PREMIAL”. IV. DA EXECUÇÃO DA “PENA CRIMINAL” E DA “SANÇÃO PREMIAL”.

I. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 4º, § 7º, INCISO II, DA LEI Nº 12.850/13

1. A Lei n° 13.964/19 (Pacote Anticrime) alterou o art. 4°, § 7°, II, da Lei n° 12.850/13, estabelecendo que “(…) são nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo” (grifado).

II. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA

2. A novidade legislativa impacta nas “sanções premiais”, aquelas cujo tempo de pena é negociado pelas partes, além do seu cumprimento em “regimes diferenciados”.

3. Para tanto, é fundamental diferenciar a “pena criminal” da “sanção premial”, como faz a Orientação Conjunta nº 1/18 das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Púlico Federal, nos arts. 26.2 e 26.1.b, nesta ordem. Veja-se:

“26. O benefício penal previsto no acordo de colaboração premiada poderá ser definido de acordo com as seguintes técnicas:
26.1. preferencialmente, pelo estabelecimento de marcos punitivos máximos, a serem concretizados em apreciação judicial com os seguintes elementos sugeridos, segundo os indicativos legais:
a) patamar máximo unificado de pena decorrente do somatório das sentenças condenatórias, o qual, ao ser atingido, levará à suspensão das demais ações e investigações em curso e seus respectivos prazos prescricionais;
b) pena que será efetivamente cumprida pela parte em regimes a serem definidos no acordo;
c) suspensão do cumprimento da diferença entre o máximo unificado da pena e a pena que será efetivamente cumprida, com possibilidade de retomada do cumprimento do máximo unificado da pena em caso de rescisão ou descumprimento do acordo; ou
26.2. alternativamente, estabelecimento de patamares mínimos e máximos, a serem delimitados por ocasião da sentença, para cumprimento da pena.
27. O acordo pode prever, como indicativo para a resposta penal a ser concretizada em sede judicial, além da pena unificada para o montante de fatos e a pena a ser efetivamente cumprida, eventuais penas restritivas de direito, o regime inicial de cumprimento da pena, a progressão de regimes, a suspensão condicional da pena, a suspensão condicional do processo, a suspensão do prazo prescricional e a aplicação dos institutos da remissão e detração. Em caso da previsão de regimes diferenciados, suas regras devem ser detalhadas no acordo.” (grifado)

4. A primeira (“pena criminal”) é aplicada na sentença condenatória pelo juiz no final do processo, quando avalia a eficácia do cumprimento do acordo (art. 4°, § 11°, da Lei n° 12.850/13), deixando a cargo do magistrado a redução da pena em até 2/3 e a consequente fixação das regras do regime prisional, à luz do Código Penal e da Lei de Execução Penal (art. 4°, caput). A segunda (“sanção premial”) se refere a um modelo mais fechado, no qual o quantum da sanção e a forma de cumprimento são previamente negociados pelo colaborador com o Ministério Público e os seus termos homologados pelo juiz, sendo mais atraente ao candidato da colaboração e dotada de maior segurança jurídica.

5. O Supremo Tribunal Federal admite a convivência desses dois modelos, como se examinará a seguir (no item 12). A doutrina também, mesmo depois do advento do Pacote Anticrime, ipsis litteris:

“(…) sempre se entendeu, doutrinariamente, que o magistrado deveria observar o critério trifásico constante do art. 68 do Código Penal, estabelecendo, assim, a pena adequada ao caso concreto, como se sequer existisse um acordo de colaboração. Tão somente depois, e desde que constatada a eficácia da colaboração do agente, caberia ao magistrado efetuar a substituição pena sanção barganhada, naquilo que a doutrina convencionou chamar de “substituição premial”. Caberia ao magistrado, ademais, deixar consignado que eventual descumprimento de cláusula do acordo poderia dar ensejo à “reconversão da pena aplicada”. Esse entendimento restou consolidado pelo art. 4º, § 7º-A, da Lei nº 12.850/13, incluído pelo Pacote Anticrime.” (Marçal, Vinicius; Masson, Cleber. Crime Organizado. 3 ed. São Paulo: Método, 2017, p. 145) (grifado)

6. A distinção é essencial, tanto para a adoção dos pressupostos para a fixação de cada uma, quanto para as consequências diversas na execução das mesmas.

III. DOS PRESSUPOSTOS PARA A FIXAÇÃO DA “PENA CRIMINAL” E DA “SANÇÃO PREMIAL”

7. Na hipótese de imposição de “pena criminal”, derivada da colaboração premiada, o juiz segue os critérios do sistema trifásico da dosimetria da pena do art. 68 do Código Penal, especialmente os do seu art. 59.

8. No caso da “sanção premial” o quantum é discutido e acertado pelas partes celebrantes do acordo de colaboração, adotando-se os critérios legais acima mencionados e/ou outras circunstâncias “diferenciadas” (como as do art. 4°, § 1°, da Lei n° 12.850/13), exatamente por não versar sobre “pena criminal”, mas sobre uma “sanção premial” de modelo fechado.

IV. DA EXECUÇÃO DA “PENA CRIMINAL” E DA “SANÇÃO PREMIAL”

9. De igual modo, a execução desses dois modelos é distinta.

10. A “pena criminal” segue os requisitos do regime prisional inicial e da sua progressão, na forma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, como estabelece o novo art. 4°, § 7°, II, da Lei n° 12.850/13, enquanto a “sanção premial” observa os estritos termos da colaboração.

11. De fato, como a referida alteração não foi textualmente expressa quanto ao seu âmbito de incidência – afetando apenas a “pena criminal” ou a “sanção premial” também –, admite-se diferentes exegeses razoáveis.

12. Neste sentido, a orientação do Supremo Tribunal Federal é a de permitir o uso de “sanção premial fechada em regime diferenciado”, quando esclarece que as balizas legais do regime prisional e da respectiva progressão, como impõe a nova redação da Lei de Organização Criminosa em discussão, atuariam como freio estatal, protegendo o colaborador, ou seja, serviriam como patamar máximo dos termos do acordo de colaboração premiada, e não mínimo. In textus:

“A fixação de sanções premiais não expressamente previstas na Lei nº 12.850/2013, mas aceitas de modo livre e consciente pelo investigado não geram invalidade do acordo. O princípio da legalidade veda a imposição de penas mais graves do que as previstas em lei, por ser garantia instituída em favor do jurisdicionado em face do Estado. (…) Isso porque o referido princípio é uma garantia instituída em favor do jurisdicionado contra o arbítrio do Estado, para evitar que o indivíduo seja punido por conduta que não era considerada criminosa no momento da sua prática, nem seja punido com penas superiores às previstas no ordenamento à época dos fatos, de modo que não faz sentido que a garantia seja observada contra o garantido.” (AR no Inq. 4.405/DF. Primeira Turma. Min. Relator Roberto Barroso. J. 27.02.2018) (grifado)

13. Deste modo, a obediência das regras de regime prisional, determinada pelo art. 4°, § 7°, II, da Lei n° 12.850/13, refere-se à “pena criminal”, derivada da colaboração premiada, na qual acorda-se deixar sob a responsabilidade do juiz a redução da pena em até 2/3 e consequente fixação do regime prisional (art. 4°, caput), mas não à “sanção premial fechada em regime diferenciado”, aquela cujo tempo e cuja forma de cumprimento são negociados pelas partes, considerando que não houve a expressa distinção e vedação pela nova norma.

14. Ademais, se a legislação (art. 4°, caput e § 4°, da Lei n° 12.850/13) autoriza as benesses máximas da não denúncia e do perdão judicial, não parece adequada a interpretação de que a mesma vedaria o benefício até mais gravoso da “sanção premial fechada em regime diferenciado”, bastando adotar, ipso facto, a teoria norte-americana dos “implied powers”, vale dizer, quem pode, legalmente, pactuar prêmios mais favoráveis, pode também negociar outros menos vantajosos.

Outono de 2022.

Sauvei Lai é promotor de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro. Membro-auxiliar da Assessoria Jurídica Criminal no Supremo Tribunal Federal da Procuradoria-Geral da República. Mestrando. Integrante do grupo de trabalho da sub-relatoria da revisão do Código de Processo Penal ( CPP) na Câmara dos Deputados em 2019. Representante da Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP) perante a Câmara dos Deputados na discussão do novo CPP em 2021. Coautor do Anteprojeto de Lei nº 4.939/2020 sobre Diretrizes do Direito da Tecnologia da Informação e outros assuntos. Professor. Ex-Defensor Público do Rio de Janeiro. Aprovado no concurso público para Delegado da Polícia Federal. Examinador do concurso público para Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro.