Temas Jurídicos

Impunidade no Brasil não é uma crise; é um projeto!

Inserido em 20 de maio de 2021
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Projeto de novo Código de Processo Penal é cartada final a favor da impunidade

O Brasil há muito tempo é visto no exterior não mais apenas como o país do futebol, mas também como o país da impunidade. Os gringos já ouviram que “não há pecado ao sul do Equador”, e sabem que, aqui, não há efetiva punição para a maior parte dos crimes cometidos. Temos um povo considerado hospitaleiro, mas que idolatra corruptos, que tem terroristas e torturadores como heróis e que acolhe amigavelmente mafiosos. A propósito, um dos mais importantes membros da Cosa nostra, Tommaso Buscetta, não foi o único a fugir para o Brasil e aqui viver com tranquilidade. Recentemente, tivemos o terrorista Cesare Battisti, já condenado à prisão perpétua na Itália, que aqui foi protegido pelo então presidente da República, recebeu asilo, virou escritor e foi morar no litoral paulista…

Mas também a nível interno, apesar de vários ideólogos negarem uma realidade tão evidente, sabe-se que a impunidade é uma chaga que assola a nação. Não somos apenas o país do patrimonialismo, da desigualdade e do jeitinho. Parece mesmo que adoramos cultuar a impunidade. Como certa vez disse o apresentador Jô Soares, “a corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa muito nossa”. Apesar de alguns repetirem mil vezes a mentira de que somos um país que prende demais, com uma altíssima população carcerária, a verdade é que punimos pouco e mal. Sim, são de fato poucos os que recebem efetiva punição se comparados à infinidade de delitos que aqui se cometem. Estamos tão desatentos à punição de infindáveis crimes, que o Estado sequer se preocupa em dar dignidade aos que de fato cumprem pena.

Além de uma criminalidade política historicamente consolidada, e de uma criminalidade violenta sempre em expansão, com facções de traficantes e milicianos crescendo em progressão geométrica em todo o país, temos uma das piores taxas de elucidação de crimes do mundo. Só no que diz respeito ao crime mais grave que existe, estima-se que sete de cada dez homicídios não são punidos no Brasil. Punir os que transgridem as normas mais importantes de convívio social e atacam os bens mais valiosos das pessoas deveria ser visto como um ato civilizatório. Mas, ao contrário, temos leis penais frouxas, que estabelecem penas brandas em relação à gravidade dos delitos, além de uma legislação processual penal inapropriada, o que não permite, de maneira efetiva, individualizar os criminosos e aplicar-lhes a devida punição.

Pra piorar, os intérpretes das leis penais e processuais penais não poucas vezes criam entraves à investigação criminal, tentam de todas as formas apequenar e tolher o Ministério Público em sua função de investigar e acusar os criminosos, consentem que o direito de defesa seja exercido de maneira abusiva, e são vezeiros em inventar nulidades ou permitir que os processos criminais se posterguem até culminarem na prescrição… Parafraseando o que disse Darcy Ribeiro, quanto à crise na educação, podemos igualmente dizer que a impunidade no Brasil não é uma crise; é um projeto.

E o que mais preocupa é exatamente um projeto, o de Código de Processo Penal, prestes a ser aprovado no Congresso Nacional a toque de caixa.

De fato, um Código de Processo Penal deve ser visto não como uma simples lei ordinária, mas como um monumento legislativo que possibilite sejam efetivas as investigações dos delitos, imprima à marcha processual celeridade, garanta o contraditório e a ampla defesa, com equilíbrio entre as garantias dos acusados e as do Ministério Público, que, enfim, permita que a lei penal seja aplicada de maneira uniforme em todo o país, mesmo nos rincões mais longínquos, onde os direitos sociais e a cidadania custam a se tornar efetivos. Daí a necessidade da mais ampla discussão, de se evitar o açodamento, o oportunismo e as lutas por poder entre instituições, que nada trazem de benéfico à sociedade. Mas o enfoque do projeto do novo Código de Processo Penal preste a ser aprovado no Congresso Nacional é totalmente outro.

Cuida-se de uma cartada final a favor da impunidade, que fará estragos certamente irreparáveis na sociedade brasileira, com consequências dificilmente reversíveis. Dentre as inúmeras aberrações, quer-se, por exemplo, restringir o poder investigatório do Ministério Público, que é o titular da ação penal. Por outro lado, o projeto permite a advogados praticar atividade investigatória “defensiva”, sem submeter tal atividade a qualquer tipo de controle por parte do Estado. Na fase processual, proíbe-se a condenação com base em indícios (no caso do “Mensalão”, por exemplo, o próprio Supremo Tribunal Federal justificou a condenação com base em indícios por se tratar de meio de prova). Além disso, burocratiza-se e dificulta-se a prova do reconhecimento pessoal de criminosos, e colocam-se enormes embaraços à interceptação telefônica e de dados como meios de prova.

Também se retira do Ministério Público instrumento para, recorrendo, reverter de imediato a soltura de réus ou a não decretação de suas prisões. Se não bastasse, chega-se ao cúmulo de exigir a votação unânime dos jurados para a condenação dos acusados de crimes dolosos contra a vida, no Tribunal do Júri. E estas são apenas algumas das atrocidades que visam a estabelecer a impunidade como regra.

Como se vê, portanto, o quadro é gravíssimo e exige imediata mobilização. Caso contrário, estaremos condenando as futuras gerações a viver num paraíso de corruptos e assassinos, onde as organizações criminosas chegarão ao poder e ditarão as regras, com reflexos altamente nocivos à economia, ao desenvolvimento social, à segurança e à qualidade de vida dos cidadãos. Nos afastaremos do Estado Democrático de Direito e nos aproximaremos muito do que se convencionou chamar Narco-Estado. O projeto de impunidade estará, enfim, concluído. Se aprovado o projeto de Código de Processo Penal da maneira que hoje está no Congresso Nacional, sofreremos mais um revés de 7×1. Mas, diferentemente de Copa do Mundo, não há novo Código de Processo Penal a cada quatro anos; e a goleada, dessa vez, será da impunidade.

 

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Alexander Araujo De Souza é Doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre. Mestre em Direito processual pela UERJ. Especializado em Crimen Organizado, Corrupción y Terrorismo pela Universidad de Salamanca. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e associado da Amperj .