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O Controle Externo e a Garantia da Efetividade das Políticas de Segurança Pública: o Caso do Serviço de Verificação de Óbito

Inserido em 11 de setembro de 2019
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Andréa Rodrigues Amin

Promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Bráulio Gregório Camilo Silva

Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

SÍNTESE DOGMÁTICA

Segurança, conceituada como qualidade ou o estado de estar seguro, e para muitos traduzida como uma sensação, é um direito fundamental cuja relevância social no estado democrático de direito a alçou ao preâmbulo da Carta Constituinte de 1988. Ombreia com os direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, todos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

Quanto à segurança, assim já o disse o Supremo Tribunal Federal: “O direito à segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.” (RE nº 559.646/PR-AgR, Segunda Turma, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJe 24/6/11).

No capítulo que versa sobre segurança pública, dispõe o artigo 144 da Carta Constitucional que se trata de um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,  e será exercido para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia rodoviária federal,  polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Econômico – e talvez nossa história melhor o explique – o texto constitucional cuidou de um fenômeno social complexo e multidisciplinar limitando-se às instituições policiais, acrescidas do corpo de bombeiros. Sem descuidar da importância das instituições de polícia, segurança pública é mais. Muito mais. Relevante, por certo, a análise do ato criminoso e sua repressão. Contudo, há causas e circunstâncias que podem facilitar ou mesmo estimular a prática de crimes, dificultar o trabalho dos atores do sistema de justiça, e que não estão enquadradas na esfera penal.

Cite-se, por exemplo, a vulnerabilidade de áreas urbanas degradas pela ocupação desordenada, ausência de iluminação pública e coleta regular de lixo. Demandarão ações, programas, projetos, políticas públicas de caráter urbanístico, mas que interferirão na segurança.

Constata-se, logo à primeira vista que, ainda que ausentes do artigo 144 da Constituição da República, as políticas públicas são ferramentas essenciais na construção de um cenário que permita o pleno exercício do direito fundamental à segurança. E nesse contexto há um ator essencial: o Ministério Público.

O artigo 127, da Carta Constitucional, assegura ao Ministério Público prerrogativas necessárias para bem cumprir seu mister: autonomia administrativa, financeira e independência funcional. Contudo, amplia sobremaneira as atribuições do Parquet, sempre identificado pela face mais conhecida de órgão acusador, e o torna responsável pela tutela dos interesses individuais indisponíveis, coletivos e transindividuais, além da fiscalização dos poderes constitutivos do Estado e os serviços de relevância pública aos direitos fundamentais. O Ministério Público tem assim, não a opção, mas o dever de atuar no controle externo da atuação ou omissão do estado em relação a políticas públicas de forma a salvaguardar a realização de direitos fundamentais previstos na Constituição.

No que respeita à segurança pública, a atuação do Ministério Público é ampla, complexa e híbrida. Compreende as esferas criminal e de tutela coletiva. É aqui, nessa interdisciplinaridade que repousa o real conteúdo do controle externo da atividade policial, ferramenta essencial para construção e eficiência de qualquer política de segurança.

Em uma leitura rápida, o termo controle externo da atividade policial pode induzir a um reducionismo do seu alcance, limitando-se a entendê-lo como fiscalização das atividades e ações de polícia, judiciária ou militar. Essa, inclusive, é a forma como as forças policiais o compreendem.

Contudo, vai muito além. A partir da leitura do artigo 3º, da LC nº 75/1993, o controle externo da atividade policial não se reduz a uma única função ou área e pode ser sintetizado nas seguintes modalidades de atuação: (i) controle procedimental do inquérito policial para a eficiência da investigação criminal (direção mediata derivada da titularidade da ação penal); (ii) controle procedimental do inquérito policial para a não arbitrariedade da investigação criminal (custos legis); (iii) controle extraprocessual de eficiência da investigação criminal; (iv) controle extraprocessual de eficiência das políticas de segurança pública; (v) controle extraprocessual de não arbitrariedade da investigação criminal e do policiamento de segurança pública (prevenção e responsabilização).

Constata-se que o acompanhamento da atividade de polícia judiciária ou militar é apenas uma das faces do controle. Em uma visão ampla, como instrumento para garantir o direito à segurança pública de forma eficiente, perpassa pela promoção e acompanhamento da política pública de segurança, assim como de todas as outras ações e omissões que impactam os órgãos essenciais que compõe as estruturas estatais de segurança.

É nesse contexto, com olhar amplo para temas que à primeira vista não guardam qualquer relação com o tema segurança pública, que o SVO – Sistema de Verificação de Óbito está em fase de implantação pelos Estado e Município do Rio de Janeiro, em ação proposta pelo Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública – GAESP.

FUNDAMENTAÇÃO

1 – HISTÓRICO

 O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro instaurou, por intermédio da 6ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania da Comarca da Capital, Inquérito Civil Público a partir de representação do Conselho Regional de Medicina no Estado do Rio de Janeiro – CREMERJ acerca da inexistência, no Município e no Estado do Rio de Janeiro, do Serviço de Verificação de Óbito – SVO concebido e tornado obrigatório pela Lei Federal nº 11.976/2009.

A missão sobredita constituiu o objeto da investigação diante da natureza do SVO como instrumento indispensável de controle epidemiológico e de efetivação das políticas voltadas à saúde pública, visto tratar-se de “órgão oficial responsável pela realização de necropsias em pessoas que morreram sem assistência médica ou com diagnóstico de moléstia mal definida”.[1]

 Entretanto, no final do ano de 2016, os autos foram encaminhados ao GAESP por se entender que a omissão dos gestores dos órgãos de saúde estavam impactando diretamente as atividades de polícia judiciária, sobrecarregando o Instituto Médico Legal – IML, atrasando a confecção dos laudos, aumentando o custo das atividades e levando a um desvio da atividade fim do órgão pericial.

Isso porque os médicos peritos passaram a realizar diversos exames de necropsia em cadáveres vítimas de mortes naturais (patológicas ou não), quando deveriam envidar esforços a esclarecer óbitos oriundos de causa violenta.

Desde o ano de 2010 a Secretaria de Saúde assumira a coordenação de reuniões com representantes das secretarias de saúde do município do Rio de Janeiro e região metropolitana, em razão da ausência do SVO no estado.

No curso do inquérito, restou esclarecido pelo Ministério da Saúde que a instalação do SVO é de responsabilidade dos Estados e dos Municípios, havendo, inclusive, incentivo financeiro repassado aos referidos entes federativos, prestado pelo Fundo Nacional de Saúde.

Seguiram-se tratativas entre a Secretaria de Estado de Segurança Pública, por intermédio da Polícia Civil, e a Secretaria de Estado de Saúde, tudo com o escopo de ver criado um convênio para instalar o SVO e elaborar o projeto necessário para a habilitação junto ao Ministério da Saúde. A interveniência da Polícia Civil se justificava pelo impacto que a ausência do SVO estava causando em suas atividades, pois os corpos que deveriam ser encaminhados ao SVO eram levados para o IML e ali necropsiados.

Nada obstante, a evolução das tratativas se viu frustrada diante da ausência de representação da Secretaria Municipal de Saúde em reunião realizada no Ministério Público, com o escopo de se obter solução extrajudicial e ver cumprido o comando legal, instituindo o SVO.

Nesse estado de coisas, somou-se ainda informação prestada pelo Ministério da Saúde dando conta que a Secretaria de Saúde de Estado do Rio de Janeiro ainda não apresentara documentação para a implantação e/ou manutenção do Serviço de Verificação de Óbito na Capital.

Ou seja: sem justificativa ou mesmo notícias de iniciativas em prol da implementação do serviço, em que pese sua previsão legal datar de 2013[2], a população do Rio de Janeiro permanecia desprovida da prestação de um serviço público essencial para nortear as Políticas de Saúde Pública sérias e consequentes.

Mas não é só.

2 – DA IMPORTÂNCIA DO SERVIÇO DE VERIFICAÇÃO DE ÓBITO E DA DISTORÇÃO QUE A SUA AUSÊNCIA IMPÕE

O Instituto Médico Legal – IML é órgão oficia que tem como atribuição precípua realizar laudos de necropsia em cadáveres cuja morte advém de causas externas, ou quando houver fundada suspeita de que o óbito é oriundo da prática de ilícito penal.

Ocorre que a ausência do SVO vinha acarretando a corriqueira e distorcida prática de encaminhamento ao IML de cadáveres oriundos de mortes sem assistência médica ou com diagnóstico de moléstia mal definida para a realização de exames de necropsia, orçados em cerca de quatro mil reais cada, vale dizer, sem indício algum da prática de ilícito penal.

Isso porque é o SVO o responsável, e o é por imperativo legal, pela apuração e resolução de casos de falecimentos de causas mal definidas, com o escopo de possibilitar a plena notificação de moléstias ao Sistema único de Saúde, não sendo possível subverter toda a lógica normativa da perícia médico legal, inclusive com profundo comprometimento da atividade do IML diante da sobrecarga imposta para além das suas atribuições e capacidades, tudo no quadro de penúria do erário do Estado do Rio de Janeiro.

Com efeito, o exame de necropsia a cargo do IML vinha atendendo a dois objetivos, quais sejam, (i) o médico-sanitário que deveria ser realizado pelo SVO, com fins patológicos visando à elucidação diagnóstica e ao fornecimento de dados complementares para o serviço epidemiológico; e o (ii) médico-legal que atendia aos interesses do sistema de justiça tendo como escopo a elucidação de ilícitos penais.

Diversos os enfoques e seus objetivos, ambos relevantíssimos, um não pode suprir o outro, restando um quadro de sobrecarga para o IML, com a consequente má prestação da sua atividade-fim.

Em termos precisos: com o SVO instalado, cerca de 38% (trinta e oito por cento) dos exames em cadáveres deixariam de ser feitos pelo IML.

Eis a demanda desatendida pelo descumprimento da lei e, claro, o impacto causado nas atividades do IML e, por via de consequência, na atividade fim da polícia judiciária.

3 – DIREITO À SAÚDE E AÇÕES DE PREVENÇÃO

O direito fundamental à saúde, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana – inscrito como fundamento da República no artigo 1ª, III da sua Constituição – possui duas facetas, pois além de ser um direito fundamental se reveste como dever prestacional do Estado.

Por sua vez, o artigo 196 da Carta Magna dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Portanto, além das funções promocional e curativa, o direito à saúde possui também a dimensão preventiva. Portanto, pode-se concluir que “as expressões ‘redução do risco da doença’ e ‘proteção’ guardam relação direta com a ideia de ‘saúde preventiva’, isto é, a efetivação de medidas que tenham por escopo evitar o surgimento da doença ou do dano à saúde, individual ou pública, inclusive pelo contágio, justificando a imposição de deveres de proteção, sobretudo pela relevante incidência dos princípios da precaução e prevenção também nessa seara[3]”.

Neste diapasão, foi promulgada a Lei nº 8.080/90, diploma regulador do Sistema único de Saúde, o qual impõe ao Poder Público as ações e políticas necessárias para implantação do direito fundamental à saúde.

No mesmo sentido do artigo 196 da Carta Maior, o referido ato legislativo dispõe que uma das dimensões do direito fundamental à saúde é a dimensão preventiva, conforme s dispositivos a seguir colacionados.

Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

I – a execução de ações:

  1. a) de vigilância sanitária;
  2. b) de vigilância epidemiológica;

(…)

  • 2º Entende-se por vigilância epidemiológica um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos. (grifos nossos).

Considerando que, nos termos do Artigo 23, II da Carta Maior, a proteção à Saúde é competência comum dos entes federativos, foi promulgada a Lei nº 11.976/09, a qual dispõe, em seu artigo 5º que:

As secretarias estaduais e municipais de saúde instalarão comissões ou serviços de investigação e/ou verificação de óbitos visando a resolução de casos de falecimentos por causas mal definidas e a busca da plena notificação dos falecimentos ao Sistema Único de Saúde”.

 

Neste diapasão, com fito de fomentar a criação do referido serviço, foi editada a Portaria nº 183/2014 do Ministério da Saúde trazendo a definição do referido Serviço:

“O SVO [Serviço de Verificação de Óbito] tem por atribuição promover ações que proporcionem, via autopsia, o esclarecimento da causa mortis de todos os óbitos, com ou sem assistência médica, sem elucidação diagnóstica, e em especial aqueles sob investigação epidemiológica.”

Conforme documento do Ministério da Saúde que instruiu o inquérito civil, “a vigilância epidemiológica tem como propósito fornecer orientação técnica permanente para os profissionais de saúde, que têm a responsabilidade de decidir sobre a execução de ações de controle de doenças e agravos, tornando disponíveis, para esse fim, informações atualizadas  sobre a ocorrência dessas doenças e agravos, bem como dos fatores que a condicionam, numa área  geográfica ou população definida. Subsidiariamente, a vigilância epidemiológica constitui-se em importante instrumento para o planejamento, a organização e a operacionalização dos serviços de saúde, como também para a normatização de atividades técnicas correlatas[7].” (grifos nossos)

Inegável, portanto, a relevância do Serviço de Verificação de Óbito para a formulação de políticas públicas voltadas à vigilância epidemiológica, visto ser “o órgão oficial responsável pela realização de necropsias em pessoas que morreram sem assistência médica ou com diagnóstico de moléstia mal definida”[8], cabendo-lhe a coleta e distribuição de dados sobre as doenças que alcançam a população de determinada região.

É dever dos entes federativos a criação de Serviço de Verificação de Óbito, visto ser um instrumento indispensável para a correta prestação do direito fundamental à saúde, mais precisamente em sua dimensão preventiva.

Diante da omissão constatada no curso da investigação e o esgotamento das tratativas com os representantes das Secretarias de Saúde do Estado e do Município, com grave impacto na eficiência dos serviços periciais do IML, na atividade de polícia judiciária e, consequentemente, nas atividades do próprio sistema de Justiça, se fez necessário o ajuizamento de ação civil pública[9] para que o Poder Judiciário determinasse a instalação do serviço indispensável à correta prestação do direito à saúde, suprindo dessa forma, a lacuna administrativa e, por via de consequência, desimpactando as atividade médico-periciais do IML.

Insta salientar que a ausência do SVO causava grande repercussão na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Explica-se.

Conforme artigos 114 e 115 do Código de Ética Médica é vedado ao médico:

Art. 114: Atestar óbito quando não o tenha verificado pessoalmente ou quando não tenha prestado assistência ao paciente, salvo, no último caso, se o fizer como plantonista, médico substituto ou em caso de necropsia e verificação médico-legal.

 Art. 115: Deixar de atestar óbito de paciente ao qual vinha prestando assistência, exceto quando houver indícios de morte violenta.

A seu turno, a Resolução nº 1.779, de 11 de novembro de 2005, do Conselho Federal de Medicina dispõe que:

Art. 2º: Os médicos, quando do preenchimento da Declaração de Óbito, obedecerão às seguintes normas:

Morte natural

  1. Morte sem assistência médica:
  2. a) Nas localidades com Serviço de Verificação de Óbito (SVO): A Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do SVO;
  3. b) Nas localidades sem SVO: A Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do serviço público de saúde mais próximo do local onde ocorreu o evento; na sua ausência, por qualquer médico da localidade.
  4. Morte com assistência médica:
  5. a) A Declaração de Óbito deverá ser fornecida, sempre que possível, pelo médico que vinha prestando assistência ao paciente.
  6. b) A Declaração de Óbito do paciente internado sob regime hospitalar deverá ser fornecida pelo médico assistente e, na sua falta, médico substituto pertencente à instituição.
  7. c) A Declaração de Óbito do paciente em tratamento sob regime ambulatorial deverá ser fornecida por médico designado pela instituição que prestava assistência ou pelo SVO.
  8. d) A Declaração de Óbito do paciente em tratamento sob regime domiciliar (Programa Saúde da Família, internação domiciliar e outros) deverá ser fornecida pelo médico pertencente ao programa ao qual o paciente estava cadastrado, ou pelo SVO, caso o médico não consiga correlacionar o óbito com o quadro clínico concernente ao acompanhamento do paciente.

2) Morte fetal:

Em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a Declaração de Óbito quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas, ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 gramas e/ou estatura igual ou superior a 25cm.

3) Mortes violentas ou não-naturais:

A Declaração de Óbito deverá, obrigatoriamente, ser fornecida pelos serviços médico-legais.

Parágrafo único. Nas localidades onde existir apenas 1 (um) médico, esse é o responsável pelo fornecimento da Declaração de Óbito

Dessa forma, em localidades onde não há o Serviço de Verificação de Óbito, os médicos do serviço público devem emitir a declaração de óbito.

Ocorre que diante da dificuldade dos médicos das unidades de saúde pública atestarem a causa básica das mortes de pacientes que não estavam assistindo, os mesmos deixavam de emitir a declaração de óbito, indicando como causa da morte “motivo indeterminado”, e remetiam, de forma indevida, os cadáveres ao IML para a realização de laudo de necropsia.

Assim, os médicos peritos realizavam diversos exames de necropsia em cadáveres oriundos de mortes naturais (patológicas ou não), quando deveriam envidar esforços a esclarecer óbitos oriundos de causa violenta ou em que haja fundada suspeita de serem oriundas de causas externas.

Significa dizer que o Órgão Técnico Científico responsável por elucidar as mortes oriundas de causa violenta acabava por realizar diversos laudos de necropsia sem qualquer valor jurídico penal, prejudicando a prestação jurisdicional.

Neste ponto, cumpre salientar, mormente em virtude da crise econômica enfrentada pelo Estado do Rio de Janeiro, que a elaboração de exames de necropsia demanda custo que varia entre R$ 4.000,00 (quatro mil reais) e R$ 5.000,00 (cinco mil reais), conforme informação fornecida pelo Instituto Médico Legal, colhida no bojo do inquérito civil. Ou seja, o impacto foi sentido no serviço e no custo da perícia médico-legal.

Ressalte-se, por oportuno, que com a existência do SVO nem todos os cadáveres seriam submetidos a exame de necropsia, seja por ausência de autorização familiar, seja pela capacidade de os médicos patologistas elucidarem a causa morte por outros meios (o que não ocorre na hipótese de o cadáver ser enviado ao IML, pois havia informação – indevida, ressalte-se – de que a causa mortis podia ser oriunda de fatores externos, circunstância que impunha a necessária  elaboração de laudo de necropsia).

Dessa forma, além de sobrecarregar o serviço do Instituto Médico Legal, a omissão dos órgãos de saúde do Estado e do município do Rio de Janeiro também causavam uma sobrecarga do Sistema de Justiça, pois os Registros de Ocorrência, necessários para o IML elaborar o laudo de necropsia, geravam Inquéritos Policiais que deveriam ser submetidos às promoções de arquivamento pelo Promotor de Justiça com atribuição, as quais seriam homologadas em Juízo.

Some-se a isso, que o envio do cadáver ao IML trazia transtornos aos familiares dos mortos, que se viam obrigados a transformar o sepultamento dos seus entes queridos em uma questão policial, indevida e desnecessariamente.

Assim, no bojo da ação civil pública proposta pelo GAESP, em caráter de urgência foi requerido que Estado e Município do Rio de Janeiro apresentassem cronograma para a criação do Serviço de Verificação de Óbito no Município do Rio de Janeiro, com prazo não superior a cento e oitenta dias para o efetivo funcionamento do serviço de verificação de óbito, nos termos da Lei nº 11.976/2011, com a consequente habilitação ao recebimento de incentivo financeiro de custeio referente ao SVO, junto ao Ministério da Saúde.

No mérito, a condenação para que fosse implantado o Serviço de Verificação de Óbitos no território das respectivas competências, observando as exigências técnicas/operacionais impostas nas portarias do Ministério da Saúde (Portaria nº 183, de 2014, ou a que a venha a substituir), apresentando divulgação ampla nos meios médicos acerca da sua criação, promovendo-lhe a manutenção e apresentando relatórios bimestrais, pelo prazo de 24 meses, das atividades desenvolvidas, custo e efetivo empregado.

Obtida a tutela de urgência, a sentença julgou procedente o pedido.

Apesar do recurso de apelação interposto pelo Estado do Rio de Janeiro, o processo se encontra suspenso por convenção das partes, com fulcro no artigo 313, II do Código de Processo Civil, eis que se busca a construção de um Termo de Ajustamento de Conduta que garanta o modelo de SVO mais adequado para a cidade do Rio de Janeiro, com mais eficiência, menor custo e constante monitoramento. As reuniões já estão sendo realizadas, proposta de TAC já apresentada e em avaliação pelas estruturas das secretarias de saúde. Frise-se, por oportuno, que no TAC a ser celebrado a Polícia Civil figura como interveniente, tendo em vista a relação entre o SVO e o seu órgão de perícia técnica.

Ressalte-se ainda que, no curso das investigações, verificou-se que o desvio de finalidade dos exames de necropsia realizados no Instituto Médico Legal não seria interrompido durante o curso do processo (mesmo com a concessão da tutela de urgência), nem mesmo com a mera instalação do Serviço de Verificação de Óbito em definitivo.

Dessa forma, após o ajuizamento da ação civil pública acima citada, o GAESP instaurou um novo Inquérito Civil (a partir de desmembramento do original) com o escopo de evitar que os cadáveres continuassem a ser remetidos ao IML fora das situações em que houvesse certeza ou ao menos dúvida razoável de que a morte ocorrera em virtude de causas externas, tanto durante o curso do processo, quanto após eventual sentença que julgasse procedente os pedidos formulados no bojo da ação civil pública.

Isso porque o alcance de tal solução envolveria não só as partes formais da demanda coletiva proposta (Estado e Município do Rio de Janeiro, por intermédio de suas Secretarias de Saúde), mas também outros atores.

Com efeito, os médicos da rede de saúde pública também contribuíam para o desvio de finalidade da atividade fim do IML, com a remessa indevida de cadáveres ao IML, em situações sem qualquer evidência de morte causada por evento externo, e os próprios policiais civis das Unidades de Polícia Administrativa Judiciária recebiam tais cadáveres, lavravam os Registros de Ocorrência e requisitavam os exames de necropsia ao IML.

Verificou-se, portanto, in casu, nos termos de doutrina abalizada que “o processo coletivo brasileiro mantém-se arraigado à mesma racionalidade do processo individual, à sua dinâmica bipolar, à adstrição da sentença ao pedido, à disponibilidade do processo e de todas as consequências advindas dessa lógica[10], não sendo apto, per se, à tutela dos interesses sociais em toda e qualquer hipótese.

Ou seja, a simples decisão judicial determinando a criação do SVO, apesar de solucionar, ao menos em parte o problema da saúde em sua dimensão preventiva, poderia não ser suficiente para impedir o desvio de finalidade do IML, consubstanciado na realização, pelo referido instituto, de exames de necropsia sem fins médico legal.

Dessa forma, no bojo do novo Inquérito Civil instaurado a partir de desmembramento do caderno investigativo anterior (IC nº 2017.00455070) foram realizadas diversas reuniões com os atores envolvidos, v.g., Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro – CREMERJ, Secretaria de Estado de Saúde, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros Militar, Polícia Militar, o que acarretou na elaboração de formulário de auxílio para os médicos por parte da referida autarquia, além de atos normativos elaborados pelos referidos órgãos públicos.

O CREMERJ realizou seminário com o escopo de esclarecer aos médicos a necessidade de não encaminhar cadáveres ao IML em hipóteses em que o exame necropsia não possuísse interesse médico legal.

A Polícia Civil elaborou os seguintes atos normativos: Resolução PCERJ nº 835, de 19 de janeiro de 2018, alterada pela Resolução nº 860, de 17 de setembro de 2018.

Por sua vez, a Secretaria de Estado de Saúde elaborou o seguinte normativo: Resolução SES nº 1.640/2018.

Os atos normativos foram elaborados a partir de considerações efetuadas por diversos atores interessados na solução da controvérsia, contando, inclusive, com a participação de médicos peritos da polícia civil que integravam a Câmara Técnica de Medina Legal do CREMERJ

Em ambos os atos (embora ainda sujeitos a ajustes), procurou-se estabelecer as hipóteses em que deverão ser encaminhados os cadáveres ao IML – sendo certo que a Polícia Civil ainda elaborou formulário a ser preenchido pelos médicos para justificar a remessa de cadáveres ao IML, o qual será analisado pela Autoridade Policial – com o escopo de cessar o desvio de finalidade que estava sendo causado ao órgão de Polícia Técnico Científica em referência, além de conceder maior segurança aos profissionais da saúde envolvidos.

Pretendeu-se, dessa forma, “compor os vários interesses legítimos que estão em litígio, de modo a otimizar a sua convivência e a conferir a melhor proteção possível para a sociedade como um todo e para os valores públicos por ela abraçados[11]” e assim solucionar um problema que se inicialmente era tratado como questão relacionada ao direito fundamental à sáude, mas que no curso das investigações, se mostrou intimamente relacionado ao direito fundamental à segurança pública.

Oportuno ainda ressaltar que, tendo em vista a atuação ativa do Parquet em conjunto com os atores envolvidos na celeuma em referência, o impacto nas atividades do IML e no número de inquéritos instaurados para averiguar mortes de causas naturais, sem quaisquer indícios de causas externas, estão em franca queda, o que se reflete em diminuição dos custos e redirecionamento dos recursos para custeio das demais atividades de polícia judiciária.

CONCLUSÃO

As políticas de segurança pública contam com uma gama de atuações que variam entre o policiamento ostensivo e a atividade técnica e científica, a qual abrange serviços diretos, como o IML, e serviços acessórios como o SVO.

Não se pode prover segurança pública sem o devido aparelhamento da atividade de investigação penal, sob pena de maciça ineficácia. Não há dúvidas de que o policiamento ostensivo é importante. Tudo, porém, resvala para a já conhecida vala da ineficiência se não houver um mínimo de correspondência como a atividade investigativa. Não há modelo de segurança pública que possa se sustentar de modo eficiente sem os dois eixos – a atividade policial ostensiva e a investigativa.

Investir no aparelhamento das atividades investigativas implica no incremento do número de elucidações de crimes, o que, por óbvio,  tem o condão de contribuir para inibir novas ocorrências, por diminuir a impunidade, gerando também para a população a sensação de que a polícia está mais atuante e a comunidade mais segura.

Assim, o órgão ministerial do Estado do Rio de Janeiro, ao receber a notícia da ausência do SVO, procurou utilizar os instrumentos disponíveis para instituição do serviço que tem por objetivo primeiro a política de saúde no âmbito da prevenção, mas que, diante da omissão dos órgãos estatais de saúde, impactavam as atividades de polícia judiciária, impondo que o IML assumisse uma função que não lhe era própria, perpassando pelas fases de promoção de políticas públicas e garantindo a efetividade de uma das vertentes do direito à segurança pública, qual seja a eficácia da atividade do IML.

O controle externo da atuação ou omissão do estado em relação a políticas públicas de forma ampla, aqui incluindo o controle da atividade policial, é uma forma de salvaguardar a realização de direitos fundamentais previstos na Constituição. O Ministério Público, enquanto instituição permanente de defesa da cidadania, é órgão de controle da Administração Pública e tem como dever, entre outras funções, zelar pela implementação de políticas e serviços públicos de qualidade. Nesse sentido, deverá atuar quando a inércia da Administração ou o mau funcionamento do serviço público estiverem impedindo a concretização de direitos previstos na constituição.

PROPOSTA DE ENUNCIADO: O controle externo da atividade policial é interdisciplinar e sua atividade compreende a fiscalização e promoção de políticas públicas, ainda que de esferas não penais, que interfiram na efetividade dos serviços prestados pelos órgãos de polícia.

BIBILIOGRAFIA:

  1. SARLET, Ingo Wolfgand, In Comentários à Constituição do Brasil. Ed. Saraiva. 1ª edição. 5ª Tiragem. 2014. pp 1931
  2. ARENHART. Sérgio Cruz. Processos estruturais no Direito Brasileiro. In O Processo para a solução de conflitos de interesse público. Coord. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANBE, Kazuo; DA COSTA, Susana Henriques. Ed. Jus Podivm. 2017. pp 479.

3.ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões Estruturais no Direito Processual Civil Brasileiro. In https://www.academia.edu/9132570/Decis%C3%B5es_estruturais_no_direito_processual_civil_brasileiro. Acesso em 31 de julho de 2019

 

[1]   http://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/declaracaoobito.pdf Acesso em 05 de outubro de 2016.

[2] Lei nº 11.976/2011

[3]   SARLET, Ingo Wolfgand, In Comentários à Constituição do Brasil. Ed. Saraiva.  1ª edição. 5ª Tiragem. 2014. pp 1931.

[7] Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_vigilancia_epidemiologica_7ed.pdf. Acesso em 29 de março de 2017

[8] In http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2015/agosto/14/Declaracao-de-Obito-WEB.pdf. Acesso em 28 de março de 2017.

[9] Autuada sob o nº 0093477-79.2017.8.19.0001

[10] ARENHART. Sérgio Cruz. Processos estruturais no Direito Brasileiro. In O Processo para a solução de conflitos de interesse público. Coord. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANBE, Kazuo; DA COSTA, Susana Henriques. Ed. Jus Podivm. 2017. pp  479.

[11] ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões Estruturais no Direito Processual Civil Brasileiro. In https://www.academia.edu/9132570/Decis%C3%B5es_estruturais_no_direito_processual_civil_brasileiro. Acesso em 31 de julho de 2019