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O Ministério Público e o sistema interamericano de direitos humanos: a sentença do caso favela de Nova Brasília

Inserido em 16 de setembro de 2019
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Eliane de Lima Pereira[1]

SÍNTESE DOGMÁTICA

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro, em sentença proferida em 16 de fevereiro de 2017 e publicada em maio do mesmo ano, por graves violações praticadas no contexto do caso Favela Nova Brasília versus Brasil.

Os fatos que deram origem à demanda no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) desdobram-se em duas incursões policiais realizadas primordialmente pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro na localidade de Nova Brasília, favela pertencente ao denominado Complexo do Alemão localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Tais incursões ocorreram nos dias 18 de outubro de 1994 e 08 de maio de 1995, ocasionando, cada uma delas, 13 (treze) mortes, totalizando 26 (vinte e seis) mortes nas duas chacinas, além de tortura e atos de violência sexual por parte dos agentes de estado, não havendo qualquer resposta por parte do sistema interno de justiça.

Restou evidente que houve falhas na persecução penal, não tendo os órgãos responsáveis pelas investigações, nem os atores do sistema de justiça, agido a contento e com a devida diligência. Neste sentido, a Polícia Civil, o Ministério Público e o Poder Judiciário não corresponderam ao que se espera constitucionalmente de suas funções, assim como não houve, sob os parâmetros do direito internacional dos direitos humanos, a devida prestação da justiça.

Nos diversos pontos resolutivos da sentença em comento são tratadas questões estruturais e que visam, em sua maioria, ao aprimoramento institucional da polícia e do Ministério Público, para que fatos como os do caso Favela Nova Brasília não voltem a acontecer. A Corte IDH também determinou que sejam retomadas as investigações de fatos que ainda não foram apreciados pela justiça – homicídios e estupros – não obstante estarem os mesmos prescritos segundo as regras do nosso direito interno.

De acordo com a sentença, o Estado brasileiro deve abster-se de recorrer a qualquer obstáculo processual para eximir-se dessa obrigação, por tratar-se de prováveis execuções extrajudiciais e atos de tortura, restando claro que o argumento da prescrição não poderia impedir a investigação, o processamento e a eventual condenação dos perpetradores de graves violações de direitos humanos.

Especificamente em relação ao Ministério Público, no âmbito da legislação interna, lembremos que de acordo com a regra exposta no artigo 129, inciso VII, da Constituição Federal, é sua função institucional “exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior”. Além disso, devemos destacar que, de acordo com o mencionado art. 129 da Constituição Federal, agora em seu inciso I, compete ao Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

Ressalte-se ainda que ao se reconhecer a existência de uma esfera pública transnacional, resta nítido que é esperado do Ministério Público uma ação de envergadura condizente com o seu protagonismo na defesa dos direitos humanos conferido pelo legislador constituinte, além de ciente da importância de seu papel no fortalecimento dos sistemas internacionais de proteção.

A sentença do Corte IDH serviu como fio condutor para a reflexão acerca da necessidade dos órgãos internos possuírem mecanismos próprios, que independam da vontade e da estrutura do poder executivo, para o cumprimento das decisões produzidas pelo SIDH.

Em razão de suas funções constitucionais, resta reconhecido que o Ministério Público precisa ter protocolos, rotinas e metodologias para o dar efetividade às determinações da CIDH e da Corte IDH. Assim fica evidente a urgência no aprimoramento das funções ministeriais para o efetivo cumprimento de sua missão constitucionalmente prevista e como premissa ao bom funcionamento dos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, especificamente no que se refere ao SIDH.

 

FUNDAMENTAÇÃO

1 – O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E O CASO DA FAVELA NOVA BRASÍLIA

1.1 –A Condenação Do Estado Brasileiro Pela Corte Interamericana De Direitos Humanos No Caso Da Favela Nova Brasília

 

Inicia-se o presente tópico chamando a atenção para a composição e funcionamento do Sistema Interamericano de Direito Humanos (SIDH) que é formado pela Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), órgãos especializados da Organização dos Estados Americanos (OEA), com atribuições fixadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

Os casos apresentados seguem um processamento de caráter bifásico, eis que o caso é iniciado perante a CIDH que exerce uma análise de admissibilidade e, apenas se constatada a violação por parte do estado demandado, edita um relatório de mérito com uma série de recomendações. Só após a prévia análise do caso pela Comissão (usualmente bastante demorada) é que o caso pode ser apresentado à Corte pela própria Comissão. Com essas premissas em mente, passemos a analisar o caso da Favela Nova Brasília.

Nos dias 18 de outubro de 1994 e 08 de maio de 1995, ocorreram duas incursões policiais realizadas primordialmente pela Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro na localidade de Nova Brasília, favela pertencente ao denominado Complexo do Alemão localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Tais operações ocasionaram, cada uma delas, 13 mortes, totalizando 26 mortes nas duas chacinas, além de tortura e atos de violência sexual por parte dos agentes de estado.

Não obstante a flagrante gravidade das violações, fato é que passados mais de 20 (vinte) anos não houve no sistema interno de justiça a responsabilização dos autores pelos crimes praticados. Em relação aos fatos ocorridos em 1994, existe processo penal em curso, em fase praticamente embrionária (decisão de pronúncia em novembro de 2018). Quanto aos fatos de 1995, o inquérito foi arquivado por falta de indícios mínimos necessários à deflagração de ação penal.

Diante da ausência de uma resposta por parte do Estado brasileiro, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch Americas apresentaram petições, em 03 de novembro de 1995 e em 24 de julho de 1996, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) relatando as falhas e a demora na investigação e punição dos responsáveis pelas supostas “execuções extrajudiciais de 26 pessoas (…) no âmbito das incursões policiais feitas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1994 e em 08 de maio de 1995 na Favela Nova Brasília”[2]

Os peticionários, em suma, alegaram que essas mortes foram justificadas pelas autoridades policiais mediante a lavratura de autos de resistência[3] à prisão. Ainda alegaram que na incursão de 18 de outubro de 1994, L.R.J., C.S.S. e J.F.C[4]. foram vítimas de tortura e atos de violência sexual por parte de agentes policiais. Enfatizaram ainda que as investigações dos fatos teriam sido realizadas com o escopo de estigmatizar e revitimizar as pessoas falecidas, pois o foco teria sido dirigido à sua culpabilidade e não à verificação da legitimidade do uso da força.

Assim sendo, formou-se o Caso Favela Nova Brasília versus Brasil na Comissão. Em 31 de outubro de 2011, houve a edição do relatório com uma série de recomendações expedidas, sendo a primeira delas com o seguinte teor:

(…) realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva das violações descritas neste relatório, dentro de um período razoável de tempo, por autoridades judiciais que sejam independentes da polícia, a fim de determinar a verdade e punir os responsáveis. Essa investigação deve levar em consideração os vínculos existentes entre as violações de direitos humanos descritas neste e o padrão do uso excessivo da força letal pela da polícia. Ainda, deve incluir as possíveis omissões, demoras, negligências e obstruções na justiça provocadas por agentes do Estado[5].

 

Diante de tal recomendação contida no Relatório de Mérito da Comissão, a reabertura dos dois casos, que já haviam sido arquivados, foi determinada pela chefia institucional do MPRJ. O primeiro deles em 10 de janeiro de 2013, pelo então Procurador Geral de Justiça Cláudio Soares Lopes; o segundo, alguns meses depois, ainda em 2013, pelo então Procurador Geral de Justiça Marfan Martins Vieira.

Se faz imperioso esclarecer que a obrigação acerca da investigação dos casos é de meio e não de resultado, o que significa dizer que não estamos obrigados a um resultado condenatório, mas ao exaurimento de todas as possibilidades investigatórias, dentro lei, com vistas à apuração e responsabilização pelas violações perpetradas.

Diante do não cumprimento e da não efetividade das recomendações contidas no relatório de mérito da CIDH, a Corte IDH condenou o Estado brasileiro, em sentença proferida em 16 de fevereiro de 2017 e publicada em maio do mesmo ano, por graves violações praticadas no contexto do caso Favela Nova Brasília versus Brasil. Esta foi a primeira vez que o Estado Brasileiro foi condenado por um caso de violência policial.

A  referida sentença impôs ao Estado brasileiro a obrigação de investigar os fatos e, caso seja pertinente, a punição aos responsáveis; a reabilitação através de tratamento psicológico e psiquiátrico das vítimas; medidas de satisfação que busquem reparar o dano imaterial e que não tenham natureza pecuniária; a publicação das seções da sentença que se referem aos fatos provados e à análise das violações à CADH, além da parte dispositiva, em dois jornais de circulação nacional; um ato público de reconhecimento de responsabilidade e placas comemorativas; a garantia de não repetição, com a adoção de políticas públicas, reformas legislativas, a extinção de autos de resistência e redução da letalidade policial; indenização compensatória, incluindo o dano material, dano imaterial, custas e gastos, reembolso dos gastos ao Fundo de Assistência Jurídica.

É imperioso ressaltar que a Corte IDH não possui funções de um Tribunal Penal, no sentido de processar e julgar pessoal e criminalmente os supostos perpetradores das violações, mas tem competência para determinar que os estados membros o façam.

Nos diversos pontos resolutivos da sentença em comento são tratadas questões estruturais e que visam, em sua maioria, ao aprimoramento institucional da polícia e do Ministério Público, para que fatos como os do caso Favela Nova Brasília não voltem a acontecer. A Corte IDH também determinou que sejam retomadas as investigações de fatos que ainda não foram apreciados pela justiça – homicídios e estupros – não obstante estarem os mesmos prescritos segundo as regras do nosso direito interno.

 

1.2– Quais caminhos percorrer para o cumprimento da sentença?

Vale observar que não existe no SIDH um mecanismo claro para responsabilizar os Estados pelo não cumprimento das suas decisões, o que inevitavelmente desperta perguntas dos próprios operadores de direito, e naturalmente de membros do Ministério Público, com o seguinte teor: estamos obrigados a cumprir o disposto na sentença? O que acontece se não cumprirmos as decisões? Quais são as consequências para o Brasil se não houver efetivo cumprimento? Quais são as sanções previstas?

Para enfrentar tais questionamentos é preciso traçar uma estratégia institucional que passa pela conscientização por parte dos membros e servidores acerca do Sistema Interamericano em si, mas também passa por um esforço em demonstrar que o que se tem a ganhar com o cumprimento das decisões é muito relevante para o fortalecimento das instituições, e que o que se tem a perder com o não cumprimento pode afetar a confiabilidade das mesmas.

Nas palavras de Ergstrom, encontra-se amparo para as reflexões anteriores:

 

Não existem mecanismos de execução para responsabilizar os Estados responsáveis pela implementação. Por exemplo, não existe um mecanismo de cumprimento político claramente obrigatório, tal como assumido pelo Comitê de Ministros no Sistema Europeu de Direitos Humanos. No entanto, como se verá discutido a seguir, a responsabilização pode operar através de múltiplos canais, incluindo, principalmente, mecanismos internos, por exemplo, na forma de mobilização da opinião pública em torno de casos específicos, conscientização por meio de estratégias de mídia e processos de litígio doméstico[6].

 

Também é importante esclarecer que não se está diante da ausência de um mecanismo de cumprimento de sentença estrangeira, pois este já está previsto em nosso ordenamento jurídico, como bem foi mencionado no Parecer de Força Executória nº 00151/2017/PGU/AGU18 nos pontos destacados a seguir, dada a sua pertinência com o assunto abordado neste trabalho e pelo fato do mencionado parecer ter sido elaborado por órgão responsável pela defesa do próprio estado, qual seja, a Advocacia Geral da União. Vejamos:

  1. Enquanto a sentença estrangeira é prolatada por órgão integrante da estrutura institucional de outro Estado, com fundamento no Direito estrangeiro, a sentença internacional é ato emanado de tribunal internacional de que o Estado faz parte, seja pela aceitação de sua jurisdição obrigatória, como é o caso da Corte Interamericana, seja por haver concordado em submeter a solução determinada controvérsia a um organismo internacional (…).
  2. As sentenças internacionais, como visto, não carecem, em princípio, de qualquer previsão legal para que produzam efeitos internos, eis que prolatadas por órgão judicial integrante de organismo internacional do qual o Estado brasileiro é parte e em face do qual reconheceu expressamente a sua jurisdição[7].

As palavras em comento deixam claro que o próprio estado brasileiro, através de seu corpo técnico especializado, reconhece que está obrigado ao cumprimento das decisões do sistema, tendo em vista que admitiu a jurisdição obrigatória da Corte IDH em 1998.

Não obstante, sabe-se que não há um procedimento previsto em lei, salvo no que diz respeito ao pagamento de indenizações. Tal constatação, por sua vez, não está alheia à realidade de outros estados partes do SIDH, mesmo daqueles que também admitiram a jurisdição obrigatória da Corte IDH. Mais uma vez as palavras de Ergstrom:

Além disso, poucos estados latino-americanos têm mecanismos institucionais formais para assegurar a implementação consistente das decisões e recomendações do SIDH. Na verdade, à luz das fragilidades administrativas de muitos estados latino-americanos, um dos principais desafios reside no estabelecimento de procedimentos administrativos e mecanismos institucionais que assegurem a implementação das recomendações da Comissão e das sentenças da Corte e não dependam do apoio discricionário do Executivo ‘caso a caso’[8].

Com isso, é necessário refletir sobre de que maneira o trabalho que vem sendo desenvolvido pelo MPRJ para tornar efetivos os pontos resolutivos contidos na Sentença do Caso Nova Brasília versus Brasil pode funcionar como fio condutor para a construção de uma metodologia que sirva de paradigma de implementação das decisões do Sistema Interamericano, provenientes da Corte IDH ou mesmo de resoluções da CIDH, na parte que corresponda às suas funções de salvaguarda dos direitos humanos e do estado democrático de direito.

2- O MINISTÉRIO PÚBLICO NO SISTEMA INTERNACIONAL DE DIREITO HUMANOS

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, os sistemas universal e regionais passaram a desempenhar um papel fundamental e estratégico para o desenvolvimento do estado de direito e da democracia no Brasil e em diversos estados espalhados pelo mundo, resta indagar o papel que cabe ao Ministério Público neste cenário.

Não há dúvidas de que o Ministério Público é constitucionalmente vocacionado para a defesa dos direitos humanos e para honra de tal mandato deve-se atuar sob os parâmetros da lei, da constituição federal e dos tratados internacionais de direitos humanos, respeitando princípios e padrões de direito internacional, em especial do SIDH, tendo em vista que o Brasil está submetido à jurisdição obrigatória da Corte IDH desde 1998.

Ao reconhecer a existência de uma esfera pública transnacional, espera-se do MP uma ação de envergadura condizente com o seu protagonismo na defesa dos direitos humanos conferido pela Constituição Federal de 1988, fortalecendo a um só tempo a si próprio enquanto instituição e aos sistemas internacionais garantidores dos direitos humanos.

As palavras de Krsticevic mais uma vez esclarecem a importância do comprometimento de diversos órgãos, além dos que integram o próprio SIDH, para que os direitos salvaguardados se tornem uma realidade.

 

Fortalecer a implementação das sentenças do SIDH exige considerar uma estratégia que compreenda vários atores chaves na execução das decisões e que, deste modo, facilite as ações próprias de quem está a cargo de alguns elementos de tal cumprimento, assim como, também, que aumente o número daqueles envolvidos na supervisão ou implementação das decisões. O debate, o aprofundamento do conhecimento e a ação em diversas áreas fundamentais para a execução das decisões permitem que todos aqueles envolvidos contribuam para o avanço na direção desejada[9].

 

Não há sombra de dúvida de que o Ministério Público é um ator chave no cenário para a execução das decisões do Sistema dada a extensão de suas atribuições, a sua imensa capilaridade, a sua vocação constitucional para a defesa dos direitos humanos e a sua força institucional. Assim sendo, a tomada de consciência dos membros integrantes do Ministério Público de que o fortalecimento do SIDH é parte expressiva no avanço do estado democrático de direito é um desafio que vale a pena enfrentar.

Por outro lado, deve-se reconhecer as enormes resistências, muitas vezes fruto de verdadeiro desconhecimento, em relação a algo que “vem de fora”, como se a adesão do Brasil às normas e sistemas internacionais não fosse feita no exercício de sua soberania, a partir de um cálculo estratégico que melhor represente os seus interesses num mundo de valores universalizados.

Dimensionar a importância do engajamento dos órgãos internos, dos operadores do direito integrantes do sistema de justiça, e mais detidamente do Ministério Público, é parte indelével da tarefa do presente trabalho. Mas a reflexão proposta também segue com a análise de ações concretas adotadas pelo MPRJ no esforço institucional de compreensão e efetiva implementação dos pontos resolutivos da sentença.

 

3 – A ATUAÇÃO DO MPRJ NO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA

Para iniciar a presente análise vale explicar que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro foi provocado por ofício encaminhado pela Advocacia-Geral da União, o qual solicitava informações a respeito do cumprimento da sentença prolatada pela Corte IDH no caso da favela Nova Brasília.

Tal ofício deu origem ao procedimento administrativo – MPRJ nº 2017.00687511 – que ensejou a análise minuciosa da sentença por parte da Assessoria de Direito Humanos e Minorias (ADHM), que considerando que o cumprimento da sentença perpassava uma série de órgãos com diferentes atribuições, sugeriu ao Procurador-Geral de Justiça a criação de uma comissão com escopo de (i) diagnosticar, como medida de não repetição, possíveis falhas ou faltas tanto por parte da Segurança Pública quanto do Sistema de Justiça, inclusive da própria instituição MPRJ na apuração dos fatos violadores de direitos humanos; (ii) garantir, com base no direito à verdade e à memória, uma resposta à sociedade, principalmente aos familiares das vítimas envolvidas nos fatos de violência sexual ocorridos em 1994 e nas mortes de 1995; (iii) instruir o relatório periódico de cumprimento de sentença.

Como resultado, foi elaborado relatório que apontou o desenvolvimento institucional a partir da criação de diversos grupos especializados (GAESP;GAECO; Assessoria de Direitos Humanos e Minorias, etc), sensibilização e capacitação dos membros do MPRJ na áreas de direitos humanos através da promoção de oficinas e cursos, entre outros apontamentos; que sugeriu o efetivo cumprimento dos pontos resolutivos tocantes à reabertura das investigações relativas aos fatos ocorridos em 1994 e 1995. Por fim, houve recomendação de criação de uma nova comissão com a finalidade de apontar medidas para aperfeiçoamento do controle externo da atividade policial.

Assim, a segunda comissão passou à análise dos pontos resolutivos da sentença em que caberia um especial aprimoramento da atuação do MPRJ, mais especificamente os pontos de 15 a 20 da referida sentença, sempre de maneira prospectiva, buscando implementar as medidas de não repetição no âmbito institucional:

Ponto 15. O Estado deverá publicar anualmente um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da polícia em todos os estados do país. Esse relatório deverá também conter informação atualizada anualmente sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente que redunde na morte de um civil ou de um policial, no sentido disposto nos parágrafos 316 e 317 da presente Sentença.

Em relação ao ponto resolutivo nº 15, restaram consensuadas as seguintes sugestões:

  • Designar um corpo técnico responsável pela captação dos dados junto ao MGP[10];
  • Estabelecer, institucionalmente, um fluxo permanente entre a Chefia de Polícia Civil (PCERJ) e a chefia do MPRJ para remessa e recebimento dos dados relativos às mortes ocasionadas durante operações policiais, sem prejuízo, em caso de negativa, da reflexão sobre possível judicialização;
  • Estimular os Promotores de Justiça das Promotorias de Investigação Penal (PIP´s) a alimentarem corretamente os bancos de dados institucionais por meio dos sistemas disponíveis;
  • Solicitar à Coordenadoria de Segurança e Inteligência (CSI) que informe o fluxo de informações referentes às operações e incursões realizadas, encaminhadas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

Ponto 16. O Estado, no prazo de um ano contado a partir da notificação da presente Sentença, deverá estabelecer os mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado, ou acusados, em conformidade com os parágrafos 318 e 319 da presente Sentença.

Em relação ao ponto resolutivo nº 16, restaram consensuadas as seguintes sugestões:

  • Elaborar uma Resolução Conjunta (Procuradoria-Geral de Justiça e Corregedoria-Geral do MPRJ) com o intuito de recomendar o exercício da investigação direta pelo Promotor de Justiça natural naqueles casos que envolvam a prática de delitos graves ocorridos no contexto de especial violação de Direitos Humanos;
  • Criar um corpo técnico especializado, dotados de peritos legistas e peritos criminais, para assessorar os Promotores de Justiça na análise das peças produzidas pelas forças policiais.

Ponto 17. O Estado deverá adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, nos termos dos parágrafos 321 e 322 da presente Sentença.

Em relação ao ponto resolutivo nº 17, restaram consensuadas as seguintes sugestões:

  • Incentivar, por meio dos órgãos de execução, o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a redução da letalidade e da violência policial;
  • Acompanhar as políticas fomentadas pelos órgãos de execução, principalmente, com o objetivo de que atendam as normas instituídas na Constituição Federal de 1988.

Ponto 18. O Estado deverá implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro e a funcionários de atendimento de saúde. Como parte dessa formação, deverão ser incluídas a presente Sentença, a jurisprudência da Corte Interamericana a respeito da violência sexual e tortura e as normas internacionais em matéria de atendimento de vítimas e investigação desse tipo de caso, no sentido do disposto nos parágrafos 323 e 324 da presente Sentença.

Em relação ao ponto resolutivo nº 18, restaram consensuadas as seguintes sugestões:

  • Encaminhar expediente ao órgão de execução com atribuição para ciência e adoção das medidas cabíveis a fim de implementar um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, em cumprimento ao Ponto Resolutivo nº 18 da Sentença da Corte IDH do Caso Favela Nova Brasília, no exercício do controle externo da atividade policial.
  • -Encaminhar expediente ao Grupo de Atuação Especial de Segurança Pública (GAESP) para a ciência e adoção das medidas cabíveis a fim de implementar, no bojo do Inquérito Civil acompanhado pelo Dr. Tiago Veras, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre o atendimento a mulheres vítimas de estupro pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, em cumprimento ao Ponto Resolutivo nº 18 da Sentença da Corte IDH do Caso Favela Nova Brasília, no exercício do controle externo da atividade policial.

Ponto 19. O Estado deverá adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela polícia ou pelo Ministério Público, no sentido do disposto no parágrafo 329 da presente Sentença.

Em relação ao ponto resolutivo nº 19, restou consensuada a seguinte sugestão:

1 – Elaborar uma recomendação conjunta com a Corregedoria-Geral do MPRJ tratando especificamente deste ponto resolutivo.

Ponto 20. O Estado deverá adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão “lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial” nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial. O conceito de “oposição” ou de “resistência” à ação policial deverá ser abolido, no sentido disposto nos parágrafos 333 e 335 da presente Sentença.

Em relação ao ponto resolutivo nº 20, restaram consensuadas as seguintes sugestões:

  • Buscar, junto ao Chefe da PCERJ, o cumprimento integral do disposto nesse ponto resolutivo;
  • Elaborar, através da Corregedoria-Geral do MPRJ, a edição de ato normativo orientando os membros do MPRJ a observarem a definição jurídica constante nos registros de ocorrência.

Findo o trabalho da Segunda Comissão, foi elaborado relatório contendo basicamente as sugestões acima expostas, relacionadas aos pontos resolutivos mencionados da Sentença, e contendo ainda a sugestão da formação de uma comissão permanente de monitoramento da implementação das medidas consensuadas. O relatório foi entregue ao Procurador-Geral de Justiça no dia 10 de dezembro de 2018. Após a entrega do relatório mencionado, foi instaurado novo procedimento para implementação da comissão de monitoramento, que tramita perante os órgãos competentes da estrutura do MPRJ.

CONCLUSÃO

É imperiosa a necessidade de que o Ministério Público do Rio de Janeiro, a partir da compreensão do Direito Internacional dos Direitos Humanos como um procedimento de acesso à Justiça, se aproprie das noções essenciais acerca da estrutura e do funcionamento do SIDH e que perceba o papel da instituição no fortalecimento dos sistemas de proteção dos direitos humanos, sobretudo no que tange ao cumprimento das suas decisões e no exercício do controle de convencionalidade (tema não tratado neste trabalho).

Mas igualmente importante é que a instituição reconheça que a Sentença do Caso Favela Nova Brasília versus Brasil também se apresenta como uma oportunidade para que o Ministério Público exerça com o devido protagonismo a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indisponíveis”, conforme determina o artigo 127 da Constituição Federal, trilhando um sólido caminho de aprimoramento do exercício de suas funções.

Não há dúvidas de que a obrigação de investigar é algo que deve priorizado pelo Ministério Público, de acordo com os pontos resolutivos da Sentença, sendo inadmissível que obstáculos processuais de ordem interna, como anistia ou prescrição, sejam suscitados para justificar eventual descumprimento. De imensa importância também é a efetiva implementação das medidas de não repetição, sobretudo através de políticas públicas estruturantes que provoquem efeitos que impactem positivamente a realidade.

Diante da ausência de mecanismos institucionais formais, não deve o Ministério Público agir a reboque do poder executivo, ou mesmo dos demais poderes estatais, partindo para a criação de seus próprios mecanismos, protocolos e metodologias para dar conta daquilo que lhe compete, sob pena de colaborar para o descumprimento das decisões do SIDH e se desautorizar institucionalmente, a um só tempo.

Neste sentido, é fundamental que o MPRJ trabalhe os pontos resolutivos da sentença do Caso Favela Nova Brasília versus Brasil com um olhar para dentro e outro para fora da instituição, e que estes olhares conversem entre si e se complementem. Ou seja, é essencial que exerça efetivamente o controle externo da atividade policial, desempenhando suas funções de acordo com o que está disposto na constituição federal, mas precisa também estar atento às suas próprias estruturas e avaliar corajosamente o que é necessário fazer internamente para bem desempenhar tão desafiadora tarefa.

PROPOSTA DE ENUNCIADO: Cabe ao Ministério Público compreender o Direito Internacional dos Direitos Humanos como um procedimento de acesso à justiça para que assim perceba o papel da instituição no fortalecimento dos sistemas de proteção dos direitos humanos, sobretudo no que tange ao cumprimento das suas decisões e no exercício do controle de convencionalidade.

REFERÊNCIAS

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU). Parecer de Força Executória nº 00151/2017/PGU/AGU, de 9 de junho de 2017.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 141/11. Mérito. Casos 11.566 e 11.69. Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros. (Favela Nova Brasília). Brasil. 31 de outubro de 2011.

ERGSTROM, Par. Reconceitualizando o impacto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In: Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 2, 2017.

KRSTICEVIC, Viviana. Reflexões sobre execução das decisões do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: KRSTICEVIC, V.; TOJO. L. (Coord.). Implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: jurisprudência, instrumentos normativos e experiências nacionais/ organização Centro pela Justiça e o Direito Internacional; [tradução Rita Lamy Freund]. Rio de Janeiro; CEJIL,2009.

NOTAS

[1] Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Email para contato: elpe@mprj.mp.br

[2] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 141/11. Mérito. Casos 11.566 e 11.69. Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros. (Favela Nova Brasília). Brasil. 31 de outubro de 2011, p 1.

[3] Terminologia superada em razão de seu evidente teor depreciativo da vítima e substituído por “morte ou lesão corporal decorrente de intervenção policial”, em consonância com o disposto no ponto resolutivo nº 20 da Sentença do Caso Favela Nova Brasília.

[4] A abreviação torna-se imprescindível a fim de preservar o sigilo das vítimas de violência sexual

[5] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p 63.

[6] ERGSTROM, Par. Reconceitualizando o impacto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In: Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 2, 2017, p. 1258.

[7] ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU). Parecer de Força Executória nº 00151/2017/PGU/AGU, de 9 de junho de 2017. p. 4.

[8] ERGSTROM, Par. Op. cit. p. 1253.

[9] KRSTICEVIC, Viviana. Reflexões sobre execução das decisões do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: KRSTICEVIC, V.; TOJO. L. (Coord.). Implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: jurisprudência, instrumentos normativos e experiências nacionais/ organização Centro pela Justiça e o Direito Internacional; [tradução Rita Lamy Freund]. Rio de Janeiro; CEJIL,2009, p. 102.

[10] Módulo de Gestão de Processos – MGP – é um sistema existente no MPRJ utilizado para a gestão de documentos e informações, criado pela resolução conjunta nº 02, de 21 de janeiro de 2010, do Gabinete do Procurador-Geral de Justiça (GPGJ) e Corregedoria-Geral do Ministério Público (CGMP).