Opinião

PEC 58/2019: um novo atentado à independência do Ministério Público e do Judiciário

Inserido em 10 de setembro de 2019
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Em jogo, uma vez mais, a ainda frágil democracia brasileira.

A pretexto de viabilizar uma punição mais ágil e desburocratizada dos membros do Ministério Público (MP) e Magistrados que vierem a incorrer na prática de desvios funcionais e disciplinares, eventuais excessos e “abusos de autoridade” no exercício de suas funções e competências constitucionais e legais, começa a tramitar pelo Senado a Proposta de Emenda à Constituição nº 58/2019 (que ressuscita, em grande medida, a PEC 75/2011), a qual prevê, entre outras coisas, a possibilidade de aplicação da “pena de demissão dos membros do Ministério Público e Magistrados por decisão administrativa direta dos respectivos Conselhos Nacionais” (CNMP e CNJ), órgãos de controle externo criados pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e de composição mista, integrados por cidadãos indicados pelo Senado, pela Câmara dos Deputados, advogados indicados pela OAB, juízes indicados pelo STF e pelo STJ, além de membros do MP da União e dos Estados (no caso do CNMP) e do Poder Judiciário da União e dos Estados (no caso do CNJ), entre outros.

Atualmente, a decretação da perda do cargo de membro do MP só pode ocorrer após sentença judicial transitada em julgado, a conhecida garantia constitucional da vitaliciedade (art. 128, § 5º, I, “a” – CF), igualmente assegurada aos juízes (art. 95, I – CF).

Historicamente, a garantia da vitaliciedade teve a relevante e legítima finalidade de preservar a atuação livre e independente do MP e do Poder Judiciário no exercício de suas funções/competências constitucionais em defesa dos direitos individuais e coletivos da sociedade, evitando-se que o promotor de Justiça ou o juiz de Direito, responsáveis pela preservação da supremacia formal da Constituição e da higidez do ordenamento jurídico, venham a ser alvos fáceis de retaliações políticas arbitrárias que possam resultar em suas demissões sumárias do serviço público.

Apresentada aos olhos da sociedade e da opinião pública com aparente intuito “moralizador” e “anticorporativista”, a referida PEC 58/2019 desperta nos menos avisados a inicial impressão de pôr fim a supostos privilégios odiosos assegurados aos Juízes e Promotores. O fundamento moralizador da proposta não resiste, entretanto, a uma análise minimamente criteriosa acerca dos objetivos ocultos que, propositalmente, não declara.

De fato, coincidentemente ou não, a PEC 58/2019, cuja análise já se encontra na CCJ do Senado, é discutida no ápice dos questionamentos em torno da Operação Lava Jato e agora sucedida da recente aprovação da nova lei de abuso de autoridade (sancionada com vetos parciais no último dia 05/09/2019), ainda sujeita ao prazo de apreciação dos vetos pelo Congresso Nacional (que pode derrubá-los, é bom que se diga).

Afinal, mais oportuno que se debruçar sobre a dimensão do estrago anual gerado ao país pelos atos de corrupção que se espalharam como câncer em fase de metástase, é justificar, como já se tornou corriqueiro em situações análogas, a ocorrência de abusos e excessos na ação daqueles órgãos ou poderes de fiscalização e controle. Chega-se mesmo ao cúmulo de se afirmar, em patente inversão de valores, que a Operação Lava Jato, mundialmente reconhecida como o maior pente fino contra a corrupção da história do Brasil (e talvez o maior do globo), é uma verdadeira organização criminosa, expressão proferida por um Ministro da Suprema Corte do país.

A crítica pública, fundamentada e democrática das decisões proferidas pelo STF através de redes sociais é cada vez mais restringida, sob o fundamento de ser necessário combater as fake news e preservar a honorabilidade dos Ministros da Suprema Corte, conforme apurações em curso no bojo de inquérito instaurado de ofício naquele Tribunal.

O grande jurista e pensador alemão Peter Häberle, em sua Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição (amplamente propalada nos votos de Ministros do STF), ficaria estarrecido com o que se tem observado no Brasil de hoje. É proibido criticar publicamente algumas decisões da Suprema Corte, mas Ministro deste Tribunal rotular a maior Operação de Combate à Corrupção do Brasil de ORCrim parece não encerrar qualquer desvio funcional atentatório aos deveres da magistratura ou mesmo qualquer ilicitude passível de controle pelos integrantes do próprio Tribunal. Um paradoxo!

E é precisamente dentro desse contexto enviesado que a PEC 58/2019, apresentada à sociedade e opinião pública sob a estampa da “moralidade” e da “desburocratização” do processo de demissão dos promotores e juízes acusados de desvios de conduta ou “abusos de autoridade”, oculta finalidades intencionalmente não declaradas, em especial a de propiciar, com a maior brevidade possível, a aplicação da pena de demissão administrativa sumária de membros do Ministério Público e magistrados que vierem a se dedicar, com denodo, liberdade e independência, às investigações, denúncias e condenações dos grandes desmandos de corrupção que assolam o país, de forma a expor, inadvertidamente, a imagem e a honorabilidade de personagens influentes da velha República perante a nova sociedade brasileira, que não mais compactua com os níveis de retrocesso político e social alcançados pelo Brasil.

É necessário colocar os pingos nos “is” para deixar claro o principal propósito da PEC 58/19: o de mais uma vez intimidar os membros do MP e magistrados, levando a sociedade (sim, a sociedade!) a perder um dos seus mais importantes mecanismos de controle da corrupção, representado pela independência funcional na atuação dos juízes e promotores, que passarão, diante do risco iminente de demissão de seus cargos por decisão direta de um órgão administrativo de composição mista, não necessariamente técnica (CNMP e CNJ), a investigar/denunciar/condenar apenas ladrões de galinha, autores de violência doméstica, estupradores e homicidas etc., e não mais os assaltantes e estupradores dos cofres públicos.

Eis aqui a grande cortina de fumaça que, como neblina de estrada, impede que se veja com clareza o que PEC 58/2019, no ponto discutido, verdadeiramente almeja: referida proposição normativa seguramente definhará o espírito combativo e independente das novas gerações de membros do MP e do Judiciário para dar lugar ao surgimento de uma legião de promotores e juízes acovardados e receosos de suas próprias convicções e valores, em prejuízo aviltante do interesse da sociedade por órgãos de investigação e controle realmente comprometidos com os mais nobres interesses republicanos.

Não se ignora que o CNMP e o CNJ, instituídos pela Emenda nº 45/2004, têm contribuído significativamente para o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do Poder Judiciário, assim como para o efetivo cumprimento dos deveres funcionais de seus integrantes. Daí a se ampliar os seus já numerosos poderes para se permitir a aplicação da pena de demissão administrativa aos promotores/juízes vai um abismo de proporções astronômicas.

Isso porque nada impedirá, na esteira de argumentos já defendidos por alguns senadores, futuras tentativas de alteração da própria composição atual do CNMP e do CNJ, de sorte a ampliar o número de Conselheiros indicados politicamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.

Assim, primeiro se permite a demissão administrativa direta de juízes e promotores pelos referidos Conselhos para, em momento posterior, alterar-se a sua própria composição, que poderá passar a ter novos integrantes indicados diretamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, propiciando a futura tomada de decisões demissionárias não necessariamente técnicas, mas pautadas por critérios predominantemente políticos, o que nos conduzirá, naturalmente, à seguinte reflexão: doravante, terão promotores e juízes que “agradar” os senadores e deputados em sua atuação para não correrem o risco de demissão motivada “por interesse público”?

É evidente, em tal contexto, que a proposta de emenda constitucional (PEC 58/19) apresentada se descortina como verdadeira cortina de fumaça sobre os olhos da sociedade brasileira. Que não reste dúvida: referida PEC possibilitará não só a demissão de promotores e juízes ímprobos e não vocacionados como também, e especialmente, a demissão política sumária daqueles que, no exercício responsável de suas atribuições legais e constitucionais em defesa dos direitos individuais e da sociedade, estiverem “incomodando” governantes e políticos corruptos e inescrupulosos, o que certamente afetará a independência jurisdicional e de uma das funções essenciais à Justiça (MP), alicerces irremovíveis de qualquer democracia civilizada que protege e respeita, como cláusula pétrea, o princípio da separação dos poderes.

Tornar os membros do Ministério Público e os juízes vulneráveis, suprimindo-lhes a garantia constitucional vitaliciedade, verdadeira cláusula superconstitucional, é derrogar, indiretamente, o direito dos cidadãos e das comunidades a um julgamento justo (fair trial). Demitir sumariamente promotores e juízes por incomodarem os poderes econômico e político comprometerá a promoção da justiça e a prestação jurisdicional realmente justa e efetiva.

Resta saber se a nova sociedade brasileira compactuará com o enfraquecimento das garantias de independência do Ministério Público e da Magistratura rumo à construção de um novo modelo de instituições de controle permanentemente intimidadas e ameaçadas por proposições legislativas tendentes a resgatar o risco sempre presente da mordaça.

Em jogo, uma vez mais, a ainda frágil democracia brasileira e a capacidade de irresignação da verdadeira opinião pública diante de PEC manifestamente tendente a fragilizar a separação dos poderes, os mecanismos de freios e contrapesos (check’s and balances) destinados a assegurar o equilíbrio das relações interpoderes, bem como os ideais de transparência, moralidade e zelo na fiscalização da coisa pública.