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Érika Puppim publica artigo sobre tratamento jurídico da vítima mulher

Inserido em 25 de abril de 2023
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A promotora de Justiça Érika Puppim publicou, na segunda-feira (24), na versão digital do jornal Le Monde Diplomatique Brasil, o artigo “A Falsa Dicotomia entre o Sistema Acusatório e Perspectiva de Gênero”. O texto critica a visão estereotipada que a sociedade, e mesmo a área jurídica, ainda tem sobre casos de abuso sexual e violência doméstica. 

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Érika Puppim mostra que “é possível analisar o processo com perspectiva de gênero e, ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário”. Para ela, “o que se espera em uma sociedade mais justa e igualitária é que a vítima mulher não seja vista com desconfiança o tempo inteiro, partindo da presunção negativa de que está mentindo o tempo todo”.

Leia o artigo no site do Le Monde Diplomatique Brasil ou abaixo, na íntegra:

A Falsa Dicotomia entre o Sistema Acusatório e Perspectiva de Gênero

É possível analisar o processo com perspectiva de gênero e, ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário

Por Érika Puppim

É só sair na mídia notícias de acusações de abusos sexuais ou violência doméstica contra homens de renome e poder para imediatamente se ouvir falas como: “Ah, temos que tomar cuidado, tem muita mulher que mente por aí!”. Vivemos em uma sociedade patriarcal que violenta sistematicamente meninas e mulheres das mais diversas formas: estupro de vulnerável dentro de casa, ofensas e agressões no lar conjugal, importunações no caminho do trabalho, assédios no trabalho, abusos sexuais em diversos ambientes – desde a rua no carnaval ao meio acadêmico. Nenhuma mulher está a salvo das mais variadas violências de gênero que perpassam todas as idades e fases da vida.

Ainda é necessário lembrar o porquê do tratamento jurídico diferenciado para os casos de violência e de feminicídio, mesmo para quem é da área jurídica e já deveria há muito conhecer o princípio da isonomia. Ainda ouvimos histórias de que “Fulano” e “Beltrano” já foram falsamente acusados por suas ex-mulheres “ressentidas e recalcadas” – reforçando um dos maiores mitos do patriarcado: o da “Eva traiçoeira”, que está o tempo todo armando contra o homem, seja porque quer lhe dar um “golpe”.

É justamente esse mito que embasa a presunção de que as mulheres estão sempre mentindo ou ao menos, merecem desconfiança, consistindo assim no principal alicerce para que as violências e abusos continuem ocorrendo, já que encontram grande dificuldade de serem reconhecidos judicialmente, principalmente, nos casos em que a violência não deixa vestígios materiais.

É preciso ainda analisar que casos são esses em que dizem que a mulher “mentiu”. Os casos em que simplesmente há absolvição por insuficiência de provas estão sendo incluídos nessa conta? Ademais, o Supremo Tribunal Federal definiu que o crime de lesão corporal como de ação pública incondicionada (numa tutela patriarcal sobre a autonomia da mulher) fazendo com que muitas cheguem em Juízo dizendo que não foi bem assim, que na verdade, ela mesma provocou, ele apenas a empurrou e sem querer bateu a cabeça na quina, porque afinal, aquele homem é seu companheiro há 10 anos e pai de seus filhos. Esses casos também são contabilizados como casos que “a mulher mentiu”?

Há ainda os casos de estupros praticados por familiares contra crianças e adolescentes, que quando vêm à tona causam uma ruptura na família e as vítimas passam a se sentir culpadas pelo afastamento de entes queridos e, para tentar apagar a história, preferem dizer que foi tudo uma “grande mentira”.

Fora ainda os casos em que a ofendida sofre tantas humilhações e revitimizações na via crucis judicial que resolve simplesmente “abandonar o processo”. Afinal, onde está “a verdade” nesses casos?

Como feminista garantista afirmo que é plenamente possível compatibilizar um sistema acusatório com perspectiva de gênero.

Não se quer que a palavra da vítima tenha uma presunção absoluta, tal como a palavra dos policiais em casos de tráfico contra réus negros e pobres – o que qualquer pessoa que defenda a Constituição deve questionar –, mas não vemos esses mesmos que duvidam da vítima mulher, questionar.

É ainda interessante notar que a vítima de roubo tem seu depoimento hipervalorizado até mesmo num falho reconhecimento fotográfico, servindo para prisões preventivas que duram todo o processo, muitas vezes mais de um ano e até mesmo condenações, mesmo sabendo da falibilidade da memória humana e os diversos fatores que fragilizam esse reconhecimento.

No entanto, quando a vítima é mulher num crime sexual ou de violência doméstica, a desconfiança é latente. Afinal, se para o réu no processo penal existe o princípio do “in dubio pro reo”, na nossa sociedade machista ainda existe para a mulher vítima o “in dubio pro stereotipo”, na dúvida, se pré-julga seu caráter.

O que se espera em uma sociedade mais justa e igualitária é que a vítima mulher não seja vista com desconfiança o tempo inteiro, partindo da presunção negativa de que está mentindo o tempo todo.

Conclui-se ser plenamente possível analisar o processo com perspectiva de gênero e ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário, valorando-se devidamente o depoimento da vítima no cotejo com os demais elementos, levando-se em conta que tais crimes ocorrem muitas vezes sem deixar vestígios e sem testemunhas, seja em casa, em uma boate, ou mesmo em universidades.

Érika Puppim é promotora de Justiça do MPRJ e integrante do coletivo Transforma MP.