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Amperj sorteia dois exemplares de biografia do pintor Guignard

Inserido em 25 de agosto de 2021
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Expoente do modernismo, Guignard (1896-1962) entrou para a história da arte brasileira especialmente pelas paisagens mineiras e pelos muitos retratos que pintou. Sua trajetória foi marcada pela formação na Europa, em países como Alemanha, Itália e França, mas a vida particular nunca foi fácil, como mostra a biografia “Guignard: anjo mutilado”, do jornalista e escritor Marcelo Bortoloti, recém-lançada pela editora Companhia das Letras.

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Bortoloti cedeu dois exemplares do livro para um sorteio entre associados da Amperj. O resultado será divulgado nos próximos dias. Para além do gênio artístico, que influenciou gerações de pintores brasileiros, o livro destaca a instabilidade psíquica e financeira por que passou Alberto da Veiga Guignard, nascido na cidade de Nova Friburgo com uma deformidade no rosto – daí a alcunha “o anjo mutilado”, dada pelo poeta Manuel Bandeira.

Sua tendência ao alcoolismo, o quadro de diabetes que não conseguia controlar, a dificuldade para ver sua obra valorizada, e também a relação com seus pares e intelectuais e a atuação como professor de pintura – tudo isso é recuperado pela pesquisa de Bortoloti, que tem como pano de fundo ora a Europa da primeira metade do século 20, entre as duas guerras mundiais, ora as Minas Gerais que Guignard tanto retratou.

Serviço: “Guignard, Anjo Mutilado”, de Marcelo Bortoloti
Editora: Companhia das Letras

Confira parte do prólogo do livro:

No final de outubro de 1961, o pintor Alberto da Veiga Guignard foi desalojado da casa onde morava, no número 80 da rua Palmira, no bairro da Serra, em Belo Horizonte. Já era um dos artistas mais importantes do modernismo brasileiro, reconhecido pela crítica por ter conseguido encontrar um estilo muito pessoal, aliado à sólida formação acadêmica na Europa. Vivia como hóspede do médico Santiago Americano Freire, seu amigo e protetor, que havia cerca de cinco anos gerenciava todos os aspectos de sua vida material.

Guignard tinha 65 anos, sem mulher nem filhos, estava diabético e tinha dificuldade de cuidar de si mesmo. Não sabia negociar seus quadros e frequentemente os dava de graça, demonstrando um temperamento ingênuo e generoso. Gastava todo o dinheiro que recebia sem conseguir administrá-lo ou prever o dia seguinte. Gostava de beber, e não raramente perdia o controle, em jornadas etílicas que duravam mais de uma noite.

Por volta das oito horas, o advogado e crítico de arte Pierre Santos, procurador de Guignard, estava em casa de pijamas e banho tomado quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, Santiago Americano Freire, com modos incomumente grosseiros, exigia sua presença imediata na casa dele, a poucos quarteirões dali. Santiago já estava havia algum tempo irritado com matérias na imprensa que o acusavam de explorar Guignard, apropriando-se de pinturas valiosas em troca de casa e comida para o artista.

Pierre mudou de roupa e seguiu para o conhecido endereço da rua Palmira. Encontrou o médico de pé na calçada, caminhando impaciente. Ao seu lado, sentado na escada do alpendre, estava Guignard, com expressão avoada e uma maleta amarela aos pés. Foi um encontro sem cerimônia. Santiago pediu a Pierre e a Guignard que entrassem no seu carro, alertando o pintor que não se esquecesse da mala. Pierre quis saber o que estava ocorrendo e ouviu uma resposta breve: “Não lhe interessa. Você vai escutar lá quando chegarmos”. No automóvel, um Oldsmobile preto de quatro portas, os três seguiram em silêncio para a casa da escritora Lúcia Machado de Almeida, na praça da Liberdade.

Belo Horizonte tinha então 700 mil habitantes e era uma cidade ainda provinciana, modernizando-se à força da especulação imobiliária. Espigões brotavam em vários bairros, dizimando as velhas mansões de estilo afrancesado. Os trilhos dos bondes estavam sendo arrancados para dar passagem aos automóveis e ônibus elétricos. O conjunto arquitetônico da Pampulha, com lago artificial e projeto de Oscar Niemeyer, conferia à capital um ar de vanguarda elegante.

O prédio de Lúcia Machado, na praça da Liberdade, era também projeto de Niemeyer — um edifício em curva com pilotis de quatro metros de altura, azulejos de Athos Bulcão, considerado uma joia da arquitetura modernista na cidade. Na cobertura viviam a escritora, o marido Antônio Joaquim, e os filhos Fernando, Patrícia e Mônica. Local frequentado por escritores, artistas e políticos, com vista do alto para o Palácio da Liberdade, como se a tradição intelectual da família a colocasse acima do governador. Lúcia era irmã do escritor Aníbal Machado, mulher elegante, reputada como dona das pernas mais bonitas da capital mineira. Tocava piano brilhantemente e era uma cronista de estilo agradável, com mérito de converter temas áridos em prosa fluida. Fazia sucesso também na literatura infantojuvenil, autora de livros como O escaravelho do diabo e Aventuras de Xisto. Seu marido, arquiteto, era também um homem refinado e mundano, paulista, irmão do poeta Guilherme de Almeida. Estudou com Oscar Niemeyer na faculdade e ajudou a criar o Museu do Ouro, em Sabará, do qual era diretor. Guignard vivera com essa ilustrada família até 1955, quando eles ainda moravam em uma casa na rua Tomé de Souza. O artista ocupava a garagem, faziam questão de afirmar as más línguas de Belo Horizonte. Mas fazia do espaço seu quarto e ateliê.

Quando a família mudou-se para o edifício Niemeyer, não havia mais espaço para Guignard, que de resto enfrentava problemas sérios de saúde, a exigir atenção constante. Foi Lúcia quem sugeriu a Americano Freire que abrigasse o pintor. Viúvo de uma ex-aluna do artista, e morador de uma casa espaçosa e confortável, o médico aceitou gentilmente receber o mestre. Cinco anos se passaram até aquela noite em que Santiago voltava com Guignard no banco traseiro.

O Oldsmobile preto estacionou na porta do edifício. Na entrada, seu colega médico Alberto Freire, outra testemunha convocada por Santiago para presenciar o encontro, aguardava os visitantes. Os quatro subiram juntos o elevador do prédio modernista. Tocaram a campainha da cobertura, e quem atendeu à porta foi Lúcia. Mal esboçou um sorriso e Santiago entrou bruscamente pela sala de jantar, arrastando o pintor: “Eu vim devolver o Guignard”.